Filtrar por género
Entrevistas diárias com pessoas de todas as áreas. Artistas, cientistas, professores, economistas, analistas ou personalidades políticas que vivem na França ou estão de passagem por aqui, são convidadas para falar sobre seus projetos e realizações. A conversa é filmada e o vídeo pode ser visto no nosso site.
- 283 - “Recebi um único apoio do Brasil”, diz músico Mario Bakuna que faz sucesso na Europa
O músico, guitarrista, compositor, arranjador e cantor com uma grande capacidade vocal, Mario Bakuna, está atualmente na estrada para promover principalmente seu último álbum, “Brazilian Landscapes” (Paisagens Brasileiras). Nesta sexta-feira (3), a turnê faz escala em Paris, no “360 Paris Music Factory”, com o show "Mario Bakuna e amigos". O músico, radicado em Londres há mais de 10 anos, tem uma carreira de sucesso na Europa e diz que nesse tempo todo só recebeu apoio institucional do Brasil “uma única vez”.
No álbum “Brazilian Landscapes” e nos shows da turnê, Mario Bakuna propõe uma viagem musical brasileira, com novas interpretações e novos arranjos de obras de grandes músicos da MBP como Dominguinhos, Djavan, Arismar do Espírito Santo e Marcos Valle, entre outros artistas de diferentes regiões do país.
Nos seus trabalhos e apresentações, Mario Bakuna se une a grandes talentos como o percussionista Edmundo Carneiro, mas também faz questão de trabalhar com músicos locais, nos países por onde se apresenta. Em Paris, vai estar ao lado do flautista Pierre Baillot, Julian Brunard, no violoncelo e das cantoras Soaya Toukabri e Swathi Raghavan.
“Às vezes por uma questão de logística, mas também de experimentação. Eu sempre estou reformulando as bandas”, explica o artista que tem entre suas principais inspirações Baden Powell e João Gilberto.
Como vocalista, que usa sua habilidade e extensão vocal para incluir onomatopeias e imitações de instrumentos como o trombone, ele diz estar aprimorando esse recurso musical. “Eu venho melhorando. Depois de ver o Al Jarreau e o Bobby McFerrin, eu me enveredei para o vocalise e para usar a voz como instrumento. Isso define bastante a personificação da minha performance”, avalia.
Palcos do mundo
Mario Bakuna, radicado há 13 anos no Reino Unido, tem frequentado palcos não apenas europeus, mas também na América do Norte e países africanos. Na programação desta temporada, já se apresentou em festivais no Cazaquistão e tem shows agendados até 2025, incluindo passagens pela Rússia e Canadá.
Por onde tem passado, tem encontrado casas lotadas e um público receptivo ao seu trabalho, fruto, segundo ele, de muita persistência já que não conta com apoio institucional no exterior. “Eu peço ajuda para levar minha música para festivais, mas nunca tive apoio de uma embaixada do Brasil. Eu sempre mando projetos”, afirma.
No entanto, ele lembra que a única representação diplomática que o ajudou foi a do Azerbaijão. “O embaixador Marcelo Montenegro contatou o Instituto Guimarães Rosa e fez muita força para que acontecesse minha ida ao Baku Jazz Festival, que foi um grande divisor de águas para mim”, afirma.
“Foi a única vez em 13 anos que tive apoio. Falta muito incentivo e seria importante para o Brasil. Quando alguém em Brasília entender que quanto mais se falar de cultura brasileira no mundo, com certeza as relações diplomáticas e políticas vão mudar”, diz o artista, que prepara seu o próximo álbum com apenas composições próprias e de outros parceiros musicais.
“Nos meus dois primeiros discos, procurei executar minha capacidade de arranjador, até para melhorar minha capacidade como compositor. O arranjo é o caminho mais nobre para você aprender a compor de maneira mais efetiva”, explica.
Fri, 03 May 2024 - 282 - FESTin completa 15 anos em Lisboa dando visibilidade a filmes em língua portuguesa
O Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, FESTin, começa nesta quinta-feira (2) em Lisboa em clima de festa. O evento completa 15 anos e promete uma edição “histórica” para celebrar o aniversário. Até o dia 12 de maio, 38 filmes serão exibidos.
Adriana Niemeyer, fundadora e diretora-artística do FESTin comemora o aniversário. “Quinze anos é uma data muito importante para nós”, garante, ressaltando as dificuldades enfrentadas para chegar até aqui. “Trabalhar com a língua portuguesa não é muito fácil. A gente tem pouco apoio financeiro, não somos uma língua que tem tanta visibilidade no mundo”.
Ela lembra que o evento, criado ao lado da também jornalista Léa Teixeira, veio preencher uma lacuna porque “não existia um festival dedicado só à língua portuguesa” e que há 15 anos não “imaginávamos que chegaríamos a essa dimensão”.
Nessa década e meia, 1.238 filmes, produzidos em todos os países de língua portuguesa, foram exibidos. Houve 23 itinerâncias em todo o mundo, 350 convidados internacionais e uma plateia de 60 mil espectadores, sem contar os internautas, que seguem o evento online. “Hoje, podemos ser considerados o maior festival do mundo dedicado à língua portuguesa”, se orgulha a diretora-artística.
Diversidade e música
Os 38 filmes selecionados este ano, entre longas, curtas e animação, tanto de ficção quanto documentários, integram as quatro mostras competitivas do FESTin, além de uma retrospectiva e três mostras paralelas, todas marcadas pela “diversidade”. “Nós costumamos escolher filmes que falam sobre direitos humanos, sobre igualdade de gênero, racismo, imigração, meio ambiente, mas também temos muitos filmes ligados à música esse ano”, detalha Adriana Niemeyer.
O festival terá música na tela do início ao fim, confirmando uma tendência atual do cinema brasileiro. Na cerimônia de abertura, nesta quinta-feira, será exibido o filme “Mamomas Assassinas – O Filme”, de Edison Spinello, e o encerramento será com “Mussum”, de Silvio Guindane.
A grande novidade dessa 15ª edição é a multiplicação dos locais de exibição em Lisboa visando ampliar ainda mais o público.
Produções brasileiras dominam
O FESTin é um festival de língua portuguesa com filmes produzidos nos vários países que falam português, mas as produções brasileiras dominam amplamente a seleção, seguidas pelas portuguesas. Na opinião de Adriana Niemeyer essa proporção espelha a realidade.
“O Brasil sempre dominou. Tem a dimensão do país, mas também as condições (de financiamento). Sempre aproveitamos alguns programas de incentivo culturais do Brasil para a produção de filmes”, diz a fundadora. Ela ressalta que o FESTin não é o único festival de cinema em que essa dominação da cinematografia brasileira é evidente. “Isso se vê bem claramente em todos os festivais no mundo inteiro”, assegura.
Mas a maior presença do Brasil é também resultado de um recuo da produção em outros países. “Nós temos visto a produção africana cair. Nós não temos visto grandes produções. Os governos estão investindo cada vez menos na cultura lá, infelizmente”, lamenta.
Para remediar essa situação, Adriana Niemeyer defende a coprodução entre os países de língua portuguesa. “Nós estamos também fazendo vários encontros entre os diretores portugueses, brasileiros e africanos para que possam fazer no futuro coproduções e incentivar realmente essa produção na África e que para o Brasil também seria muito importante”, acredita.
Segundo Adriana Niemeyer, o FESTin serve de “vitrine para esses países africanos, que têm poucos recursos para mostrarem seus filmes em outros países”, ao mesmo tempo que “leva o cinema em língua portuguesa ao redor do mundo”. Para continuar esse trabalho, ela pede mais apoio das autoridades dos países de língua portuguesa.
“Se fala muito em CPLP (Comunidade dos Países em Língua Portuguesa), em língua portuguesa na ONU, mas eles têm que entender que tudo começa também dentro das comunidades. Nós merecemos um pouco mais de atenção nesse sentido”, reivindica.
O FESTin 2024 acontece de 2 a 12 de maio em Lisboa, mas os filmes da seleção também pode ser vistos online.
Wed, 01 May 2024 - 281 - Antonio Veronese, “O Pintor do Olhar”, inaugura exposição e lança livro em Paris
Artista brasileiro radicado há mais de 20 anos na França, Antonio Veronese inaugura nesta terça-feira (30) sua mais nova exposição, “Le Peintre du Regard” (O Pintor do Olhar, em tradução livre) na qual traz obras recentes de seu trabalho conhecido por retratar “as profundezas da alma humana”. A mostra é inaugurada às vésperas do lançamento de um livro homônimo, com um resumo da trajetória do artista, que tem obras espalhadas por várias regiões do mundo.
“É uma mostra com trabalhos novos, de uma fase em que a gente vai ficando mais velho e a pintura mudando um pouquinho”, afirma o artista em referência à oitava exibição na subprefeitura do 6° distrito da capital francesa. O local sempre foi uma referência para a obra de Veronese, que também já exibiu em outros locais de prestígio em Paris como o Carrousel du Louvre, Unesco e o Museu Histórico de Saint-Cloud.
As novas obras se mantêm fiéis à essência de sua pintura: a expressão do sofrimento humano, preocupação despertada desde seus primeiros anos de vida, na sua cidade natal, Brotas, no interior e São Paulo.
“Eu sempre tive uma sensibilidade muito grande, até desproporcionada com relação ao sofrimento dos outros. Eu me lembro que eu era pequeno, passava uma ambulância. Eu começava a fazer uma oração para quem estava dentro da ambulância. Meu pai dizia, meu filho, ele tem a família dele para fazer oração. Você não precisa ser o culpado de todas as dores do mundo. Mas eu acho que isso me um pouco enraizado em mim”, lembra o pintor ítalo-brasileiro.
Suas telas traduzem também suas experiências no Brasil como voluntário de presídios de meninas e meninos menores, no Rio de Janeiro e em Brasília.
“Eu falava da fome, da exclusão, da violência, mas eu não tinha tido experiência própria. E eu fui de encontro aos meus protagonistas nessas prisões, porque são vítimas absolutas da omissão do Estado brasileiro, que é incapaz de formar bem e incapaz de recuperar quando eles são desviados. Então eu fui tocado profundamente por essa realidade, que é uma realidade assustadora”, afirma o artista, que se formou em Direito e só passou a se dedicar completamente à pintura, sua grande paixão, a partir dos 36 anos, após um problema cardíaco.
Pintor autodidata, ele teve como grandes influências de Lasar Segal e outros mestres como o norueguês Edvard Munch e do anglo-irlandês Francis Bacon. A relação com sua arte é totalmente orgânica, garante.
“A pintura se manifesta de uma maneira quase que espontânea, quase que só trabalhando o hemisfério direito do cérebro, não o esquerdo. Então ela vai sair como? Como um vômito. De tudo isso que eu passei, de tudo isso que eu vi. E ela vai buscar, com a experiência, uma forma estética que possa convencer. Mas o primeiro movimento, o primeiro ato, ele é fruto de uma pulsão. Não existe nenhum tipo de racionalismo, racionalidade na primeira imagem que depois vai ser desenvolvida”, explica.
Perplexidade do mundo contemporâneo
Com obras expostas em lugares tão distintos como Paris, Dubai, Japão, Los Angeles, Suécia e Estados Unidos, Veronese acumula críticas elogiosas ao seu trabalho tanto da imprensa como da crítica especializada. Em 2011, lembra, o jornal The New York Times escreveu sobre suas obras: “Veronese não pinta rostos, pinta sentimentos”.
No seu trabalho, Veronese expressa sua perplexidade diante das tragédias do mundo contemporâneo, e explica por que prefere não dar nomes às suas obras, apesar das exigências do mercado e dos expositores. “Eu não consigo explicar, porque realmente a pintura, a escolha do que vai sair, ela é sem nenhuma preparação, sem nenhuma racionalidade. Ela é fruto de uma pulsão. Então se eu dou o nome, eu te direciono para uma coisa que nem eu sabia que existia, aquela imagem. Ela vem de uma pulsão inicial”.
Antonio Veronese decidiu se estabelecer na França, onde seu trabalho já foi catalogado como “expressionismo orgânico”. Mas curiosamente, conta, é o local onde menos vende suas obras. “A classe média francesa é extremamente sofisticada, mas não sobra dinheiro. Os impostos são altos, então para ela é difícil comprar. As observações e os comentários dos franceses me orientam para a continuidade da exposição. Eles dizem, fazem comentários. Eu vejo o quadro que chama mais atenção, então essa sofisticação é francesa, é uma coisa extraordinária”, afirma Veronese.
Críticas ao Brasil
Essa acolhida o convenceu a fincar residência e seu ateliê na capital francesa, em 2004, deixando para trás seu país natal, alvo de algumas críticas. “Eu acho que a classe “A”, que teria sofisticação para comprar pintura no Brasil, está mais interessada em comprar bolsas de grife, de coisas assim”, lamenta.
No entanto, Veronese faz questão de destacar suas várias exposições no país, entre elas no Museu Nacional de Belas Artes, no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro e também no Museu da cidade de São Paulo. Além disso, tem um painel no Congresso Nacional e na Universidade Católica no Rio de Janeiro, chamado Just Kids, que é o símbolo do 10° aniversário do Unicef.
“Eu reclamo um pouco do Brasil, mas de uma certa insensibilidade das elites do que de uma colhida das instituições. Esse apoio que sinto aqui na França, das pessoas de classe média, do cinema, músicos que estão nas minhas exposições, é uma coisa que acalenta o coração da gente”, conclui.
Mon, 29 Apr 2024 - 280 - Romance histórico sobre rendeiras do interior de Pernambuco ganha tradução na França
A escritora e roteirista carioca Angélica Lopes acaba de lançar na França a tradução de seu primeiro romance, "A Maldição das Flores" ("La Malédiction des Flores"), editado pelo prestigiado selo Seuil. Neste romance histórico, ela narra a intrigante história de um grupo de mulheres rendeiras do interior de Permambuco que inventa um código com os pontos da renda e lacês para poder se comunicar e salvar uma amiga de uma situação de violência doméstica, nos anos 1920.
"Como todo grupo oprimido, que não tem como se comunicar ou lutar de maneira muito ruidosa, elas inventam uma técnica discreta, silenciosa, para conseguir passar mensagens e elaborar a fuga da amiga", explica Angélica em entrevista à RFI.
A história é ambientada na região onde nasceu a bisavó de Angélica, um universo que sempre chegou aos ouvidos dela por meio de histórias contadas pela mãe ou por seu avô. Nascida no Rio de Janeiro, Angélica foi atraída pela região dos ancestrais – "dominada por coronelismos e outras leis, leis dos homens" –, uma realidade bem diferente do espaço urbano onde cresceu.
"Esse livro veio de um desejo meu de falar sobre a união entre mulheres, de conexão entre mulheres, de luta por emancipação", explicou.
A trama é alimentada pela maldição que atinge a família Flores. Todos os homens que passam pela vida das mulheres dessa família morrem cedo. Elas se casam, o marido morre, os filhos homens morrem ainda crianças. A partir de algumas gerações, o número de mulheres na casa aumenta.
A cidade cria uma narrativa de que aquelas mulheres são amaldiçoadas, uma narrativa que "se você se aproximar das Flores, você pode morrer". Mas ao ficarem isoladas e não terem a vigilância de marido, irmão, elas se tornam muito mais livres do que todas as outras mulheres da cidade.
"A maldição, na verdade, é uma bênção para elas naquela época, porque elas faziam a renda, elas tinham o próprio sustento pelas mãos", destaca a autora.
Rendeiras: uma história de luta e independência
Foram freiras francesas que introduziram a renda Renascença no Nordeste. Mas as religiosas teciam as peças em segredo nos conventos. Na pesquisa que Angélica fez em Pernambuco para a construção do romance, ela encontrou rendeiras que tiveram um papel determinante para a democratização da atividade, gerando renda para uma região sem recursos. Histórias reais dessas heroínas se entrelaçam com os personagens de ficção.
"Maria Pastora, por exemplo, trabalhava num convento e aprendeu a fazer renda observando os movimentos das religiosas. Ela compartilhou a técnica com as suas amigas e familiares, fazendo a renda se espalhar por Pernambuco", conta. A cidade de Pesqueira, segundo a escritora, "tornou-se um grande polo de produção, gerando renda para todo mundo". Outra personagem que ela destaca é uma abolicionista do Recife que organizava manifestações feministas, participou da luta pelo voto feminino e pelo divórcio.
Angélica Lopes tem 20 livros publicados, mas a maioria para o público infantojuvenil. Com este primeiro romance, ela diz que satisfaz um desejo de se dedicar a uma literatura de maior complexidade. "Eu já estava sentindo nos meus dois últimos livros juvenis, que eles já tratavam de temas adultos. Eram livros que tratavam de depressão, um outro de bullying. Apesar de serem temas também jovens, eles eram mais complexos, então eu já tinha essa vontade de buscar uma literatura um pouco mais desafiadora, um texto mais desafiador", diz.
"A Maldição das Flores" já foi traduzido ou está sendo traduzido para França, Itália, Estados Unidos, Portugal (uma adaptação), Turquia, Romênia, Polônia e talvez seja brevemente publicado na Coreia do Sul. No Brasil, o livro é editado pela Planeta.
Sat, 27 Apr 2024 - 279 - "É um presente ocupar o pavilhão de artes aplicadas na Bienal de Veneza", diz Beatriz Milhazes
A convite do brasileiro Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza, e do Victoria and Albert Museum (V&A) de Londres, a artista carioca Beatriz Milhazes expõe até novembro obras monumentais no Arsenale, o pavilhão dedicado às artes aplicadas na mostra internacional mais antiga do mundo. Vinte e um anos depois de estrear em Veneza, que representou para ela "um divisor de águas" na carreira, a pintora contou em entrevista à RFI como é estar de volta ao evento italiano.
"Eu chamaria de um 'presente' o convite para essa participação", diz a carioca, uma das artistas brasileiras de maior projeção internacional na atualidade. Quando representou o Brasil na Bienal de Veneza de 2003, ao lado de Rosângela Rennó, cada uma em uma sala, Beatriz não imaginava que viveria novamente um momento tão intenso.
"Esse convite em 2024 reúne duas coisas muito significativas na minha vida: o Adriano Pedrosa [diretor artístico do Masp], com quem tenho parcerias diversas há pelo menos 20 anos, e é o primeiro curador não americano e não europeu escolhido para ser o curador-geral da Bienal, e o pavilhão de artes aplicadas, que é uma colaboração entre o Victoria and Albert, um dos meus museus favoritos", relata Beatriz. O V&A tem a maior coleção de arte artesanal do mundo e sempre serviu de referência ao trabalho da brasileira. "É a união de duas situações muito fortes em termos da minha vivência artística", destaca.
O universo do design, de tecidos, bordados, crochês e rendas sempre interessaram à pintora e gravadora. Para compor a seleção de obras apresentada em Veneza, o curador Adriano Pedrosa propôs a ela que focasse em tecidos para desenvolver as pinturas murais. A artista selecionou alguns que já tinha em sua coleção pessoal e, com uma verba do museu de Londres, comprou outros tecidos antigos artesanais.
"Eu pude estudar especificamente a questão cromática, a construção dos tecidos e estruturas, o cruzamento, os elementos e motivos que você encontra, olhar para isso e trazer para o universo da minha pintura de forma mais objetiva", explica. "Foi um desafio, porque uma coisa é você ter essas referências e elas estarem livres no seu universo, outra coisa é você realmente ter aquele material 'x'". Em seguida, o resultado dessa observação foi transposto para os desenhos preparatórios, que foram o ponto de partida para a construção de cada uma das cinco pinturas monumentais que exibe em Veneza – todas inéditas para o público.
História, arquitetura e pintura
O visitante que entrar no pavilhão do Arsenale irá se deparar com a tela "Memórias do futuro 1", pintada por Beatriz Milhazes em 2022. "A ideia é realmente de você trabalhar ou vivenciar essa história para construir as memórias do futuro", avisa.
Na passagem para a sala principal, vê-se um grupo de colagens de papel que serviu no processo de trabalhos em gravura e serigrafias recentes, mas anteriores à pandemia. Ao entrar na sala principal desse prédio histórico, carregado da memória de Veneza, construído com tijolos aparentes vermelhos e colunas imensas, aparecem as cinco pinturas monumentais sobre painéis, em um ambiente em que o público é envolvido entre a arquitetura e as pinturas.
"No centro do pavilhão, tem uma mesa, onde eu fiz uma composição com tecidos de vários países – Filipinas, Vietnã, Japão, África, Brasil, Guatemala, México – que praticamente virou uma instalação", conta a pintora carioca.
Tapeçaria irá decorar embaixada dos EUA em Brasília
No painel principal, o maior deles, em frente às pinturas, a artista instalou uma tapeçaria desenhada por ela, mas executada na célebre Manufacture Pinton, instalada na região de Aubusson, no centro da França. A peça, de 8 metros de largura por 3,20 de altura, será instalada na nova sede da embaixada dos Estados Unidos em Brasília.
Em sua pesquisa de preparação das obras, Beatriz Milhazes diz buscar "a poesia" e "lidar com a alma". "Esse tipo de 'fazer', que são parte de rituais, que demonstram uma preservação da cultura de diversos lugares no mundo, é uma busca por algo que é espiritual, belo, humano", exalta.
"Isso, para mim, sempre foi uma fonte extremamente rica para o meu trabalho. Eu sempre tentei unir os conceitos, vamos dizer, da pintura, que vieram do modernismo europeu. No meu caso, a minha referência mais forte foi o modernismo europeu e o nosso brasileiro, que já revisitaram todas essas práticas de arte popular, arte naif, outras artes, que hoje finalmente estão sendo reconhecidas simplesmente como arte", observa. A busca de regularidade, a ordem e a cor, como elemento principal nessa construção, sempre a interessou. "A mim, me fascina desenvolver complexos sistemas de ordem que são baseados num fazer humano", reflete.
"Uma felicidade estar ao lado de artistas indígenas"
O curador Adriano Pedrosa trouxe para a Bienal de Veneza vários artistas indígenas brasileiros. Conviver com eles na preparação da exposição foi "uma felicidade", afirma a pintora carioca, que sempre se interessou por esse universo.
"Os meus arabescos, por exemplo, foram inspirados nos desenhos faciais das tribos Kadiwéu, que são desenhos que as mulheres faziam no corpo", aponta. "Eu acho o Carnaval no Rio de Janeiro, o desfile carioca, extraordinário na maneira como a liberdade existe na relação cromática, junto com a questão das formas e o desenvolvimento dos temas. É um momento extremamente feliz que nós estamos vivendo", afirma Beatriz Milhazes.
Na avaliação dela, não é só a questão do curador Adriano Pedrosa ser brasileiro, mas a leitura renovada e "possível" que ele faz de toda a arte construída até agora, "um universo que nunca fez parte". "Para mim, é uma felicidade tudo isso", conclui.
Fri, 26 Apr 2024 - 278 - 50 anos da Revolução dos Cravos: cientista político estuda oposição à ditadura portuguesa no Brasil
O dia 25 de abril marca os 50 anos da Revolução dos Cravos, em Portugal, que resultou no fim da ditadura liderada por Antônio Salazar e que influenciou na independência de colônias portuguesas na África. Um aspecto menos abordado dessa história é a oposição ao governo português feita a partir do Brasil, onde muitos portugueses viveram exilados. Esse é o tema da pesquisa do professor e cientista social da Universidade Federal Fluminense (UFF) Douglas Mansur, entrevistado pela RFI Brasil.
Maria Paula Carvalho, da RFI
RFI: Para fugir da ditadura de direita mais longa do século XX, que durou de 1926 a 1974, várias levas de portugueses foram para o Brasil, um dos países que mais recebeu imigrantes de Portugal, juntamente com a França e a Itália. Esses migrantes tiveram uma atuação importante contra o regime de Salazar e pela volta da democracia no seu país de origem. Como funcionavam estes centros de oposição à ditadura portuguesa no Brasil e que impacto eles tiveram?
Douglas Mansur: Como você mencionou, a ditadura de Portugal foi a maior ditadura de direita do século XX. Ela começou em 1926, com o golpe militar de Salazar, e segue ao longo dos anos com o Estado Novo. Salazar fica no poder até o final dos anos 1960, quando pela idade não tem mais condições de governar e vem a falecer. O regime dura, ainda, até 1974, nos últimos anos, tendo o Marcelo Caetano à frente. E durante todo esse período, nós tivemos uma oposição interna em Portugal, clandestina e alvo de prisões, de violações de direitos humanos etc., de formas de expulsão. Por isso nós tivemos um número significativo de exilados. O exílio no Brasil teve um papel fundamental. Até 1961, o Brasil era o país com maior número de imigrantes portugueses.
RFI: Uma primeira leva de exilados partiu em 1927, segundo a sua pesquisa, com um perfil mais liberal e republicano e fundaram associações no Brasil, onde passaram a publicar jornais. Como foi essa atividade?
Douglas Mansur: Uma primeira leva, como você mencionou, veio logo em 1927. Eram liberais republicanos e fundaram no Brasil, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, centros republicanos, além de jornais. O "Portugal Republicano" era um desses jornais. Mas essas associações foram fechadas com o nacionalismo de Vargas e com o início da Segunda Guerra Mundial. Então, nós temos um período de praticamente uma década em que há muito pouca oposição à ditadura portuguesa. O salazarismo, inclusive, cresce entre as colônias e entre as associações de imigrantes.
RFI: Já depois da Segunda Guerra, a partir de 1950, começaram a chegar ao Brasil portugueses mais jovens, com ideais socialistas e comunistas, para fortalecer essa oposição. O que diferencia esse segundo grupo do primeiro e como eles atuavam?
Douglas Mansur: Essa oposição é retomada em meados dos anos 1950, aí já mesclando essa geração mais antiga de liberais republicanos com uma geração nova, que vive os anos da guerra em Portugal, com uma predominância de comunistas, mas também socialistas, mais tarde de católicos e até de dissidentes do regime.
RFI: Com a queda do fascismo e do nazismo, havia uma expectativa pelo fim das ditaduras na Espanha e em Portugal, o que não aconteceu. Mais do que nunca, esses portugueses no exílio se lançaram na luta pela democracia, e uma das suas armas era a publicação de um jornal. Esse processo também contou com a participação de brasileiros?
Douglas Mansur: Esse pessoal resolve fundar, em meados dos anos 1950, um órgão de imprensa: o "Portugal Democrático". Este jornal vai durar até 1975, portanto até depois do fim da ditadura, e vai ser o único órgão de imprensa em língua portuguesa, que trata de Portugal no exílio e que não vai sofrer censura. E ele vai conseguir agregar não só grande parte dessa oposição, mas também ter uma relação com intelectuais, com universitários, com sindicalistas brasileiros, com a sociedade civil brasileira de modo geral.
RFI: Logo em seguida, eles enfrentaram, também, a ditadura militar no Brasil. Eles puderam continuar a questionar a ditadura portuguesa, quando vários meios de comunicação brasileiros e intelectuais eram censurados em casa? Eles podiam tratar de casos de tortura, abusos ou falar de anistia no seu país natal, quando práticas semelhantes ocorriam no país de exílio?
Doulglas Mansur: Quando o jornal foi criado, o Brasil vivia uma democracia, ainda que relativa e questionável em muitos aspectos, mas isso possibilitou a ampliação significativa e a vinda para o exílio de lideranças políticas portuguesas do campo da oposição. De fato, em 1964, o jornal lança uma edição teste, logo após o golpe de 1964, em que usa vários jargões da esquerda, jargões marxistas, para testar se ele ia ou não ser censurado. E o que aconteceu foi que o diretor do jornal foi chamado e avisado de que o jornal poderia continuar a circular, desde que não tocassem em assuntos brasileiros. Apesar disso, ele foi importante porque circulava em São Paulo e em mais de 20 cidades do Brasil e, depois, em mais de 20 países. Ele tratava de temas como violação de direitos humanos, tortura, anistia, democracia, temas que estavam censurados no Brasil e que, de alguma forma, eram tratados, só que espelhados em outra ditadura. E, curiosamente, o governo da ditadura civil-militar brasileira também era simpatizante da causa anticolonial, de libertação dos povos das então colônias africanas, que começaram um conflito com Portugal, a partir de 1961, para se tornarem independentes. E o jornal tratou bastante disso e se aproximou desses movimentos, o que fez com que ele tivesse longevidade e não passasse por censura.
Evento em Paris
RFI: Tudo isso está no livro que você publicou em 2006, chamado "A oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro", que está na sua terceira edição. Por causa desse trabalho, você foi convidado para tratar do tema em uma conferência que acontece aqui em Paris, neste 26 de abril, um evento sobre os 60 anos da ditadura brasileira, na Escola de Altos estudos em Ciências Sociais da França (École des Hautes Études en Sciences Scociales – EHESS), do qual você participa por videoconferência para falar dessas redes de enfrentamento da ditadura em outros países. Conte-nos sobre a sua participação?
Douglas Mansur: Trata-se de um evento sobre os 60 anos da ditadura no Brasil e eu vou abordar essas redes que foram importantes para a inserção dos exilados portugueses no Brasil. É importante dizer que já havia revistas no Brasil que haviam aproximado os modernistas brasileiros aos modernistas portugueses. Então, nas páginas do "Portugal Democrático", você podia encontrar manifestos em prol da anistia assinados por Vinícius de Moraes, artigos do Rubem Braga, de Carlos Dummond de Andrade, que contribuíam para o jornal. O sociólogo brasileiro Florestan Fernandes também ajudou a organizar congressos no Brasil em prol da anistia de presos políticos da Espanha e de Portugal. E depois, com o 25 de abril de 1974, acontece o movimento inverso. Uma parte desses portugueses volta para Portugal e passa a lutar e a apoiar uma oposição à ditadura brasileira. Alguns brasileiros vão para Portugal e para Moçambique, que é uma dessas ex-colônias, e que se tornam independentes. Então, de alguma forma, você tem uma vivência em duas ditaduras e a oposição a duas ditaduras. Justamente essa vivência, de um enfrentamento de um exílio no Brasil e depois de uma segunda ditadura no Brasil, e em seguida o movimento inverso, de receber e acolher brasileiros, é disso que iremos tratar.
Crescimento da extrema direita
RFI: O que pode ser dito sobre a relação atual entre o Brasil e Portugal? Em que contexto se inserem esses 50 anos da Revolução dos Cravos e os 60 da ditadura brasileira?
Douglas Mansur: Brasil e Portugal têm uma relação histórica, apesar da imigração de portugueses no Brasil ter diminuído significativamente e de Portugal ter adentrado na União Europeia em 1986 e ter se voltado muito mais para este espaço. Porém, os dois países vivem dilemas contemporâneos em torno da democracia. É impressionante ver como os temas são recorrentes, inclusive os lemas, as frases. O Salazar tinha como lema "Deus, pátria e família", por exemplo. Eu vejo muito mais proximidade entre o salazarismo e uma extrema direita brasileira do que propriamente com o fascismo histórico italiano, que era expansionista, que era secular, não era ligado à religião. A expressão de extrema direita do Brasil, e que até agora também tendo espaço em Portugal, tem muito mais relação com o salazarismo histórico, embora tenha alguns elementos de fascismo do que com propriamente o fascismo e o nazismo.
RFI: As últimas eleições em Portugaldemonstram a ascensão da “nova direita” representada pelo partido Chega.
Douglas Mansur: Os dois países estão experimentando testes nas suas democracias e a ascensão de uma extrema direita. Em Portugal, pela primeira vez desde o 25 de abril de 1974, você tem uma votação expressiva de extrema direita. Até onde vai o pluralismo, até onde a democracia pode tolerar de modo que não seja aniquilada? E são debates que já estavam no antigo jornal "Portugal Democrático", não com essa linguagem. Mas são debates que a gente, olhando para a história, vê que tiveram a ver com a desinformação. Não é o único fator, mas foi um fator importante para a ascensão da extrema direita, do nazifascismo e de outros regimes de extrema direita na Europa. Há outras razões, como a questão econômica, estrutural e estamos vendo um período pós-industrial no mundo, isso gera muito desemprego e novos riscos sociais. E então alguns imaginam outras alternativas à democracia. Há uma ascensão de extrema direita em diversos lugares do mundo: na Hungria, no Brasil e até nos Estados Unidos. Voltando à questão histórica, eu vejo muita relação das fake news com toda a propaganda falsa que o nazismo fazia sobre o perigo do estrangeiro, particularmente do polonês, para justificar a invasão da Polônia e começar ali uma expansão pela Europa. Tudo isso passava no cinema, passava no rádio. Isso fez com que Hitler fosse eleito e levou a uma exacerbação do nacionalismo. A gente está no meio desse debate agora.
Thu, 25 Apr 2024 - 277 - "Aposentaria do Brasil é um excelente negócio", diz advogada especialista em direito internacional
Você sabia que existe um acordo previdenciário entre o Brasil e a França que permite somar o tempo de contribuição nos dois países para a aposentadoria? Mas afinal quando é vantajoso usar essa opção? É possível ter duas aposentadorias? Essas são algumas das dúvidas mais comuns entre brasileiros que se mudam para outro país, deixando para trás anos de contribuição. Para explicar melhor esse assunto, a RFI convida a advogada internacional Kelli Menin, brasileira radicada na França, com especialização em Direito Previdenciário.
Maria Paula Carvalho, da RFI
RFI: Como funciona a aposentadoria aqui na França? É possível trazer os valores de contribuição do Brasil?
Kelli Menin: A aposentaria do Brasil é um excelente negócio. De uma maneira geral, aqui na França, por mais que você trabalhe muitos anos e contribua muito, você vai acabar se aposentando mais ou menos com 40% da média. Já no Brasil, no mínimo com 60% da média. E sobre os valores: eles não vão sair de um país para o outro. A única coisa que vai sair de um país para o outro é o tempo. Mas você vai acabar recebendo a proporção do que você contribuiu em cada país se você usar o acordo.
RFI: Quando e como usar o acordo?
KM: A melhor maneira de usar esse acordo internacionalé quando, somando o período que você tem em outros países com o tempo da França, você completa 15 anos de contribuição e isso quando você já tem a idade para se aposentar, ou seja, 64 anos aqui na França, e no Brasil, 62 para as mulheres e 65 para os homens. Portanto, chegando nessa idade, se você não tiver 15 anos de contribuição completos em algum desses países, você pode pedir o acordo e usá-lo para se aposentar com o tempo de trabalho de outro país, no país que falta. Isso se chama totalização de períodos.
RFI: E se a pessoa contribuiu pouco no Brasil?
KM: Não tem problema nenhum. Muita gente pensa que vale a pena esquecer a aposentadoria do Brasil, mas não, isso não é verdade. Depende da sua idade: se você tiver entre 40 e 45 anos, vale muito a pena pagar o INSS no Brasil para ter duas aposentadorias, porque você pode completar. No Brasil, você precisa apenas de 15 anos de contribuição e você tem direito a aposentadoria integral.
RFI: Depois desses 15 anos de contribuição, o trabalhador precisa continuar pagando esporadicamente o INSS?
KM: Sim, eu aconselho, pois eu atendo muitas pessoas que estão pagando errado e que estão colocando dinheiro no lixo. Se você já completou 15 anos de contribuição, você não precisa pagar todos os meses. Você precisa pagar pelo menos uma vez a cada seis meses para manter a qualidade de segurado no INSS. Pense que o INSS funciona como uma seguradora. Se você estiver mantendo a sua qualidade de segurado, ou seja, estiver pagando no mínimo uma vez a cada seis meses e algo acontecer, como caso de morte ou uma doença, você vai contar com esse seguro público. Algum familiar vai ter direito à pensão por morte, ou você vai poder receber a aposentadoria por invalidez ou auxílio-doença, o que é muito importante.
RFI: Vamos falar sobre valores. Quem contribuiu vários anos com um valor alto, e depois que se muda de país começa a contribuir com o mínimo. É certo fazer isso ou vai acabar baixando a aposentadoria?
KM: Não faça isso. Quem contribuiu por muito tempo com valor alto, é essencial que continue contribuindo por um valor alto também até completar os 15 anos. O que acontece se você pagar pelo salário mínimo? Você está jogando no lixo um patrimônio previdenciário valiosíssimo. Justamente para não pagar um pouquinho a mais, você vai ter uma perda financeira gigantesca na aposentaria. O cálculo do seu benefício, no final, vai diminuir muito e você vai ter uma aposentadoria com um custo-benefício horrível.
RFI: É possível se aposentar em dois países?
KM: Não só em dois, você pode se aposentar em vários países. Você pode seguir essa lógica: você precisa no mínimo de 15 para ter uma aposentadoria integral em cada país.
RFI: Quem não contribuiu em nenhum dos dois países ainda tem algum direito?
Keli Menin: Ótima pergunta. Depende de alguns outros requisitos, mas tanto aqui na França como no Brasil, os dois países disponibilizam benefícios assistenciais. Aí, depende da renda da família ou de algumas outras condições. Resumindo, se você precisar dos valores para sobreviver, você pode, você tem o direito, sim, ao benefício previdenciário.
RFI: É possível pagar contribuições atrasadas no Brasil para se aposentar ou aumentar o valor do benefício?
KM: Você até pode fazer pagamentos atrasados, mas precisa analisar se vale a pena. Com a reforma da previdência, foi introduzida uma lei nova que proibiu utilizar o tempo ou os pagamentos de atrasados como carência para se aposentar. Então, não permite mais pagar, ou seja, fazer pagamentos atrasados para se aposentar. Para aumentar o valor pode. Assim, se você precisar pagar atrasados para completar carência, para entrar na regra de transição antes da reforma, o INSS não aceita. É bem complexo isso, mas se você quer pagar atrasados, é melhor procurar um profissional que vai te ajudar.
Wed, 24 Apr 2024 - 276 - "Há uma rede simbólica tácita de censura no Brasil", diz Wagner Schwartz, que lança livro em Paris
Em "A nudez da cópia imperfeita", lançado no Brasil pela editora Nós, o artista Wagner Schwartz revisita, reinventa e elabora o episódio vivido em 2017, quando um exército de robôs e aliados de Jair Bolsonaro usaram uma imagem de sua performance La Bête, inspirada na série Bichos, de Lygia Clark (1920-1988), apresentada no MAM. Retirada do contexto, a foto, onde a filha de uma amiga toca o corpo nu do artista, deflagrou um linchamento virtual sem precedentes e milhares de ameaças à sua vida.
No dia 26 de setembro de 2017, um artista brasileiro, Wagner Schwartz, fazia uma performance no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Inspirada na série Bichos, da artista visual Lygia Clark, a performance de Schwartz se chamava La Bête. Dentro da sala, uma amiga de longa data do artista, e também sua colega, Elisabeth Finger, estava presente com sua filha de quatro anos, que num determinado momento da apresentação toca o corpo do artista nu. Esse momento é captado numa foto que, tirada do seu contexto, é levada para a internet, multiplicada e transformada em milhares de ameaças de morte, num linchamento virtual, dentro e fora do Brasil.
O episódio é revisitado pelo artista Wagner Schwartz no livro "A Nudez da Cópia Imperfeita", com o qual acabou uma turnê pelo Brasil e que será lançado em Paris no dia 29 de maio, com leituras da atriz portuguesa Maria de Medeiros. "No livro eu falo sobre os efeitos desse contexto [do episódio], mas não exatamente sobre o fato, o fato já está, digamos, midiatizado, revelado, extrapolado em jornais no Brasil e no exterior", explica Schwartz que conversou com a RFI sobre a publicação.
RFI: Você cita a jornalista Eliane Brum, que diz que no Brasil a ficção está obsoleta, só existe realidade. É interessante porque o livro faz uma releitura poética e ficcional também de um momento seu e do momento brasileiro muito importante. E você faz menção ao "Memórias Póstumas de Brás Cubas", marcador do realismo brasileiro de 1881, de Machado de Assis. Você retoma a mesma ironia machadiana com essa proposta de "hiperrealismo", esse realismo que a jornalista que Eliane Brum fala...
Wagner Schwartz: Eliane Brum foi muito importante porque para mim e para o desenvolvimento dessa trama, porque eu, no momento em que fui atacado no Brasil, decidi não falar para nenhuma imprensa. Foi muito interessante o fenômeno de um dia ser, digamos, desconhecido pela imprensa e, no dia seguinte, ser procurado pelas maiores e mais importantes publicações do Brasil. Mas, na realidade, eles não queriam me entrevistar, eles queriam entrevistar alguém que não existia, que não era eu. E eu não podia dar entrevista em nome desse Wagner que não existia.
RFI: Quem era essa pessoa?
WS: Era uma pessoa inventada pela extrema direita e seus seguidores. Então eu não podia falar por ele. Eu só podia falar por mim. E naquele momento eu estava completamente machucado, não conseguia dar entrevista. Há uma rede simbólica tácita de censura hoje no Brasil que é extremamente preocupante.
RFI: Você foi linchado virtualmente. A cena foi tirada do contexto em que existia e foi disseminada em todo o país e fora dele, onde ouvimos os ecos. O diretor sueco Ingmar Bergman dizia que "a sombra da morte dá relevo à vida". Como você transformou o linchamento em vida nesse livro?
WS: Ainda pegando a linha da Eliane Brum, foi que ela entrou em contato comigo, um mês depois que tudo tinha acontecido e quando ela entrou em contato comigo, eu disse para ela que não conseguiria responder para ela naquele momento. Como ela fazia parte de um jornal [o El País], que tem uma estrutura de uma dinâmica diferente dos outros, ela me disse que podia esperar. E eu respondi no meu tempo essas perguntas para ela. A Eliane conseguiu me acompanhar e dar sentido esse momento e publicar o momento. Então ela foi a pessoa que conseguiu de alguma forma e talvez sem saber, mas cuidar da minha dor naquele momento, como uma jornalista sabe fazer. Foram muitas ameaças de morte. Ameaças de morte não são, claro, bonitas. São estrategicamente horrorosas e te criam uma sensação de medo que você, na realidade, não tem diariamente. No Brasil, nós nascemos com medo, nós andamos com medo na rua, mas essa sensação era elevada à máxima potência, porque eu não desacreditava delas, bastava uma para me tirar a vida.
RFI: Como foi a reação das instituições artísticas brasileiras a esse episódio?
WS: Elas se fecharam, eu acho. Eu acredito que elas tenham criado um programa ou uma programação que para um "não público", e é isso que para mim é o mais preocupante. Hoje me parece que as instituições de arte no Brasil em geral estão fazendo programações para quem não vai, para quem não visita essas instituições. (...) Se a gente vai aqui [em Paris] no Centro Pompidou, a gente sabe o que vai encontrar. Se a gente vai no Palais de Tokyo, a gente sabe que a gente pode encontrar, mas as instituições de arte brasileiras estão mais preocupadas com o que este "não público" pode ver, pode tomar consciência, do que com o próprio público que está lá para assistir. Então há uma rede simbólica tácita de censura hoje no Brasil que é extremamente preocupante. E como nós temos um governo hoje de esquerda no Brasil, toda uma equipe extraordinária de pessoas inteligentíssimas, capazes de lidar com esse desconforto do corpo, desse corpo que foi soterrado durante anos na nossa cultura. Nós temos mudanças nas leis, mas, institucionalmente, no mundo da arte, não há. O que há é uma desconfiança "progressista" sobre esses corpos.
RFI: Você dedica o livro à pessoa que retirou a imagem da criança do Instagram e que deflagrou todo esse processo.
WS: Sem essa pessoa, esse livro não teria acontecido. E mudanças importantes na mentalidade brasileira talvez não teriam também acontecido. Antes eu acreditava que a arte fazia pouco seu papel social, político, e eu acredito hoje que quando ela é tirada do seu invólucro, ela pode causar transtornos, e bons transtornos na sociedade. Eu já agradeci Jair Bolsonaro publicamente ao MBL, que são figuras deploráveis do sistema político brasileiro, por terem feito o trabalho que os jornalistas antes não conseguiam fazer no Brasil, que era exatamente explorar a arte como ela é. Quando a gente é censurado, começa a se autocensurar também.
RFI: Você cita Laurie Anderson dizendo que "não é a bala que mata, é o buraco". Eu queria saber nessa censura progressista que você cita, qual é o buraco que mata, que corpos são permitidos e que corpos são excluídos?
WS: Olha, eu vou usar ainda mais a palavra agora, no momento em que talvez não deveria. Quando a gente é censurado, começa a se autocensurar também. E eu estou me programando para não fazer isso. Ontem, por exemplo, uma amiga me mandou um edital feito entre o consulado francês e o consulado alemão sobre um novo projeto de curadoria em que eles estão buscando temas relacionados à "felicidade". Então você já imaginou o tanto de artista "feliz" que a gente vai ver mandando seu projeto? Eu não tenho ideia de como um tema como esse possa surgir em um momento em que guerras estão acontecendo, em que nós vemos vítimas caindo na nossa frente, mudanças climáticas absurdas e censura acontecendo dentro e fora do Brasil.
RFI: Você começou esse livro através de um processo documental do episódio, e acabou derivando em determinado momento pela ficção. Por que?
WS: Eu optei pela ficção porque não queria nesse livro dar voz às vozes que já foram ouvidas. Eu precisei falar do que acontece do lado de dentro. Então é o meu corpo que fala, é a minha memória que fala e ela é ficcional porque o real tem o tempo dele. Tem um instante dele acontecer, e, a partir do momento que seu corpo se desconecta do real, do fato, é impossível que a ficção não seja essa ponte que cria esse elo entre de linguagem, entre um efeito e uma perspectiva do efeito. E eu precisei da ficção, porque na ficção existe mais espaço. O fato está encerrado. No passado ele é fixo, mas pela ficção e pela arte, o passado não é fixo, ele pode ser reestruturado.
*Para assistir o vídeo desta entrevista na íntegra, clique na foto.
Tue, 23 Apr 2024 - 275 - Sociólogo lança livro em Paris sobre relações familiares no contexto da Amazônia brasileira
O sociólogo, professor e escritor José Henrique Bortoluci lança, em Paris, o livro “O que é meu”, uma história sensível sobre a própria família, em que narra as viagens do pai, que trabalhou como caminhoneiro durante 50 anos, e as mudanças e sentimentos gerados depois que ele foi acometido por um câncer de intestino. A publicação já foi traduzida em mais de 10 idiomas.
José Bortoluci, conhecido como Didi, é o pai do autor, José Henrique Bortoluci, e um dos personagens principais desse livro, que mistura autobiografia e pesquisa científica, uma literatura de não ficção.
“O que é meu”, lançado agora na França com o título “Ce qui m’appartient” reproduz as conversas entre pai e filho, mas trata também de temas universais. Tendo desbravado toda a região Norte do Brasil, as andanças de seu Didi abrem espaço para discussões sobre o desmatamento da Amazônia, o avanço do garimpo e a situação dos povos indígenas.
Nascido e criado em Jaú, no interior de São Paulo, o autor conta, de forma bastante sensível, o momento de sua partida para os Estados Unidos para fazer um doutorado. Ele descreve que calculou com o pai a distância de Jaú até Michigan. E escreveu:
“Meu pai não entende nada do mundo universitário, ele tem uma vaga ideia do que é defender uma tese. Por outro lado, as distâncias ele conhece bem”.
Bortoluci acredita que o livro foi uma oportunidade para construir “estradas e pontes” entre a experiência dele e a experiência de vida do pai.
“Somos da mesma família, o que nos coloca em uma mesma posição de classe social, que é um tema fundamental no meu livro, mas são vidas que vão se tornando cada vez mais diferentes, conforme eu vou ficando mais velho, vou estudando e me torno professor. Ele foi caminhoneiro por 50 anos, dirigiu em todo o território brasileiro, então o livro também é uma tematização sobre as distâncias sociais e as formas de aproximação”, detalha.
Mobilidade social
Bortoluci explica que a família tinha recursos bem limitados, vivia apertada com as contas que venciam a cada mês, e que os pais tiveram pouco estudo. Ele, pelo contrário, conseguiu quebrar essas barreiras e conquistar um doutorado em uma universidade norte-americana. E essa é uma das grandes questões que ele enfrenta neste seu primeiro livro.
“Pessoas que passam por esse processo de mobilidade social, que vivem vidas muito diferentes em termos de classes sociais, de acesso à educação, à renda, quando comparado aos seus pais, vemos que vivemos uma vida um pouco dividida, entre a realidade atual e a realidade passada, entre uma classe social e outra, e linguisticamente dividida. Eu mantive os meus registros e o registro oral do meu pai, já que o livro é amplamente baseado em uma série de entrevistas que fiz com ele no começo de 2020”, revela o sociólogo.
O autor conta ainda que o momento é bastante propício para se debater o tema. Questionado sobre uma tese da escritora francesa e prêmio Nobel de Literatura, Annie Ernaux, de que ascender socialmente vem acompanhada de um sentimento de traição com a classe que ficou para trás, ele discorda e fala do seu sucesso escolar como um “empreendimento familiar”.
“Acho que o termo traição não faz jus a todas essas experiências, inclusive porque ele é um pouco moralizante. Mudar de classe social leva a clivagens, a dúvidas, a dores, mas também a orgulho, a confraternização conjunta. E o que eu quis com essa frase, que também está no livro, que o meu sucesso acadêmico era um empreendimento familiar, era para mostrar que a gente não faz nada sozinho”, opina.
Preservação da Amazônia
“Eu tinha a certeza de que quando eu entrasse nas histórias do meu pai, a Amazônia teria um papel muito importante, porque a maioria das histórias que eu ouvia quando criança tinha se passado na Amazônia, principalmente nos anos 1970, em um processo de expansão das rodovias do qual meu pai foi parte comum dos trabalhadores, o que também significou uma aceleração da devastação da Amazônia”, relembra Bortoluci, acrescentando que o projeto da Transamazônica, que se aprofundou durante a ditadura militar e foi continuado durante a democracia brasileira, foi responsável pela perda de quase 20% da floresta.
O autor opinou sobre o atual governo e a importância dada à proteção desse ecossistema. Para Bortoluci, com o novo governo é possível voltar a pensar a Amazônia como algo que tem futuro.
“Passamos por um período em que oficialmente a política era a da devastação. Mas o futuro da Amazônia ainda está muito em jogo. Vimos que os números do desmatamento diminuíram, mas isso é só o início. Não acho que esta é uma questão que um governo só vai resolver. É algo que tem que estar no centro sobre que tipo de país nós queremos ser. E ainda não está”.
Leia tambémMensagem de Bolsonaro para militância é "gasolina em fogo", diz sociólogo após revelação de vídeo
Tradução em mais de 10 idiomas
“O que é meu” foi traduzido em mais de dez idiomas e está sendo lançado em diversos países. Bortoluci conta que não esperava tamanha repercussão.
“O livro surgiu de um desejo muito grande da minha parte, de ouvir com atenção as histórias do meu pai. Isso aconteceu num momento de muita delicadeza, porque foi durante a pandemia de Covid-19 e quando meu pai teve um diagnóstico de câncer. Ele acompanhou todo o processo de escrita e faleceu no fim do ano passado, quando o livro já tinha sido publicado no Brasil e ele sabia que seria publicado em vários lugares", recorda o escritor.
"Meu segundo desejo era escrever uma história literária. Não havia nenhuma imaginação sobre esse livro ter uma vida fora do Brasil. Surgiu realmente do encontro desses dois desejos. Então foi uma alegria muito grande quando editoras no exterior passaram a se interessar por essas histórias, que são muito pessoais, da vida de um trabalhador das estradas, mas que tocam em interesses que vão além do privado”, finalizou José Henrique Bortoluci.
Fri, 19 Apr 2024 - 274 - Expedição científica no Brasil do século 19 inspira artista brasileira que expõe na Europa
A artista brasileira Aline Xavier acaba de encerrar em Paris uma residência artística de seis meses na Cité Internationale des Arts (Cidade Internacional das Artes), no bairro do Marais. Da França, ela seguiu para a Alemanha onde inaugura a partir do dia 20 de abril uma exposição sobre o naturalista alemão Langsdorff, que chefiou uma importante missão cientifica no Brasil no século 19.
Em Paris, Aline Xavier participou de um novo programa de residência pluridisciplinar na Cité Internationale des Arts que foi encerrado com a exposição “Passeios selvagens”. A mostra reuniu o trabalho dos dez artistas envolvidos no programa que tinha como temática principal a transição ecológica e a crise climática. “Foi um programa que me interessou principalmente pela interface entre arte e ciência”, conta artista.
A mineira apresentou uma peça e uma performance, intituladas “Escrever a Voz dos Animais”. Para criar os trabalhos, ela se baseou no sistema de zoofonia inventado pelo francês Hercule Florence (1804-1879), para documentar as vozes dos animais que ele viu no Brasil no século 19.
“Florence foi com Langsdorff ao Brasil. Não só ele, mas outros artistas renomados, como Rugendas, por exemplo. E ele ficou impressionado com os sons dos animais que ouviu, principalmente na Amazônia, e criou esse invento, a “zoofonia,” que é uma maneira de anotar o canto dos animais. E isso, quando não tinha gramofone ou a Bioacústica, que hoje é um campo da ciência”, relata.
A artista recriou as partituras musicais de Florence usando, por exemplo, um guarda-roupa original da Normandia do século 19, que tem quase a mesma idade que o inventor francês, encontrado no Mercado das Pulgas de Paris.
“Contraexpedição”
Os trabalhos que fazem referência a Hercule Florence integram um projeto maior que Aline Xavier batizou de “Contraexpedição” e que resgata a missão científica do naturalista alemão Langsdorff, realizada de 1822 a 1829, e que teve um papel importantíssimo na história do Brasil.
O médico e naturalista Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852) morou no Brasil por quase 20 anos. Ele chegou em 1813 como cônsul-geral da Rússia no Rio de Janeiro. Este ano se comemora os 250 anos de seu nascimento. Esse projeto já levou Aline Xavier à Rússia, onde estão os arquivos da expedição, e de Paris, ela seguiu para a Alemanha para a inauguração de uma grande exposição, no 20 de abril, que comemora os 250 anos do naturalista.
A artista faz um paralelo com o fato de quase não haver mais “indícios de Langsdorff” na cidade onde ele passou grande parte da vida, e a perda de memória do naturalista alemão no final de sua vida. “Ele contrai malária na Amazônia e quando volta para a Alemanha não se lembra de nada”, afirma, enfatizando que “o homem que dedicou a vida para inventariar, morre sem absolutamente nenhuma memória”.
A obra da artista pluridisciplinar dialoga com o patrimônio, a memória, e tem também um lado político, militante, de estar sempre alertando principalmente para os riscos das mudanças climáticas. Eu venho de uma trajetória de documentário e cinema. Então, essa ideia de catalogar ou de inventariar ideias permeia muito meu trabalho. E quando eu olhei para essa história, que foi a da expedição Langsdorff, o que me chamou atenção foi essa riqueza na documentação da nossa exuberância natural brasileira, que é algo que já está perdido. Eu encontrei um Brasil que não existe mais”, revela.
Clique na foto principal para assistir à entrevista completa.
Thu, 18 Apr 2024 - 273 - "A tocha olímpica é um símbolo de união, não uma peça decorativa", diz designer da tocha Rio 2016
Esta terça-feira (16) marca o momento em que a chama olímpica é acesa pelos raios do sol em Olímpia, na Grécia, como manda a tradição. Símbolo de unidade e de paz, o fogo espalha o espírito dos Jogos, dando o início às comemorações para Paris 2024. Para entender melhor esse acontecimento, a RFIBrasil conversou com o designer brasileiro Gustavo Chelles, o idealizador da tocha olímpica dos Jogos Rio 2016.
Maria Paula Carvalho, da RFI
Após percorrer cidades gregas e cruzar o Mar Mediterrâneo a bordo do veleiro Belém, a tocha olímpica chegará à França no dia 8 de maio, em Marselha, onde iniciará a sua jornada de três meses, passando por diversas regiões e pelos territórios ultramarinos, percorrendo 12 mil quilômetros.
"A tocha olímpica é um símbolo, ela não é um uma peça decorativa, não é um produto, mas um instrumento para carregar a chama. A gente fala muito sobre o revezamento da tocha, mas não há revezamento de tocha, e sim revezamento da chama", explica Chelles. "Cada pessoa pega uma tocha e faz o que se chama de 'beijo'. Na hora que eles passam a chama de uma tocha para outra e vão transmitindo a chama para que chegue à pira olímpica", descreve.
"A chama tem a simbologia da vida, da energia, da iluminação, da luz que o esporte traz para as pessoas, pois o esporte é uma ferramenta de inclusão, uma ferramenta de superação", diz Gustavo Chelles. "Os Jogos Olímpicos têm o poder de mostrar que as pessoas são capazes de chegar onde muita gente não acreditava", destaca.
O designer brasileiro fala sobre os desafios de construir uma tocha olímpica: "tem essa parte técnica realmente complicada e a questão da construção do símbolo". Ele destaca que "há toda uma metodologia para fazer com que a tocha transmita tanto os valores olímpicos quanto também a essência cultural de cada país que sedia os Jogos".
"Diferente de um queimador de fogão"
A Tocha de Tóquio 2020 tinha uma simbologia relacionada com a cultura japonesa, da flor da cerejeira, significando mudança e harmonia. Já a tocha da Rio 2016, tinha muito a ver com a vibração e a alegria do Brasil, colorida e com movimento e que tinha uma novidade a mais. "O fato de a tocha abrir foi um desafio. A gente já tinha alguma experiência com combustão, porque a gente sempre fez muito projeto de fogão e você tem um queimador. Mas um queimador de fogão é diferente do queimador de uma tocha. Você tem a questão de entrada de oxigênio, de rendimento, de constância da chama. E a gente perdeu muito tempo durante o projeto para poder fazer com que a chama fosse o mais estável possível e fosse visível, porque a chama visível é amarela e ela precisa ser vista pela televisão, precisa ser vista pelas pessoas de longe", observa o criador da tocha carioca.
Gustavo conta que precisou ir várias vezes para a Espanha, país onde a tocha da Rio 2016 foi fabricada, para trabalhar com fornecedores. "A gente teve que superar muitos obstáculos para poder ter alguma coisa que realmente funcionasse e fosse segura para as pessoas conduzirem", relembra.
No caso do Rio, foram feitas 15.000 unidades. "A tocha tem que ter um certo peso para que as pessoas consigam portar, mesmo deficientes e idosos. Ela não pode ser muito pesada, então você não pode ter muito combustível, né? Por isso os trechos de revezamento são curtos, justamente para permitir que todo mundo, seja qual for a idade, seja qual for a condição física, possa participar. Então, o gás dá para queimar durante dez minutos, em média", explica o designer. "As pessoas escolhidas pelas comunidades para portar o fogo ganham as tochas dos patrocinadores. Então, além da emoção de participarem do revezamento, elas ficam com aquela lembrança também para a vida".
Apenas a tocha que entrou no estádio do Maracanã, no dia da abertura da olimpíada carioca, tinha mais gás, para suportar um trajeto mais longo. Outra curiosidade é que havia dez tochas com câmeras para filmar o revezamento. "O Bob Burnquist, o skatista logo antes da gente, veio andando de skate, passou por uma outra pessoa que passou para a gente e a gente tem essa lembrança também filmada", celebra Chelles.
Design parisiense
A tocha olímpica de Paris foi apresentada ao público no dia 25 de julho de 2023, um ano antes dos Jogos Paris 2024. Feita em aço, na cor champanhe, pelo designer francês o Matt Lehanneur, ela transmite valores de igualdade por ter os dois lados iguais e tem a representação do rio Sena, com ondas desenhadas. "Eu achei muito bonito o projeto. É um símbolo simples, mas, ao mesmo tempo, é orgânico também", observa Chelles. "Justamente, ele está falando da questão humana, da organicidade. A tocha tem a ver com a humanidade e tem a ver com as águas também, que são tão importantes para Paris, pois o rio Sena banha a cidade. E é interessante que ela também é disruptiva, não é uma tocha igual a todas. Eles foram bem ousados em relação ao formato", completa. "Eu acho que o design tem essa função de provocar, de olhar para coisas novas, o que tem a ver um pouco com o design francês também", avalia. "Cada tocha traz essa emoção, essa inovação e certeza de que o ser humano é capaz de se reinventar, até mesmo no esporte", acrescenta.
Mitologia
Conta a mitologia grega que Prometeu roubou o fogo dos deuses e entregou para os humanos. Assim teria nascido a chama que a cada quatro anos volta a ser acesa na Grécia. "Na verdade, Prometeu foi punido, ele foi acorrentado para sempre porque deu esse poder para os homens", conta Gustavo Chelles. "Mas acho que é uma simbologia interessante dar esse poder dos deuses para os homens. E o esporte mostra isso, essa capacidade humana de ir além dos limites. Você vê que sempre tem quebra de recordes. As atletas acham uma forma de treinar, de se desenvolver, de sonhar com algo mais e que impulsiona a humanidade positivamente em relação ao futuro", diz.
"União em tempos de guerra"
"Tem duas coisas importantes aqui: o fogo tem a ver com a iluminação, com a luz. Porque quando as pessoas viviam nas cavernas, na época dos caçadores-coletores, o fogo deixava os animais longe, ele protegia as pessoas também", contextualiza. "A chama tem uma simbologia muito forte na história humana e tem um pouco a ver, também, com a guerra que a gente está vivendo agora, essa coisa horrível que está acontecendo no Oriente Médio. E os Jogos Olímpicos sempre foram uma forma de chamar a atenção para união das pessoas", destaca Chelles. "Acho que é uma coincidência importante, de teremos esses Jogos Olímpicos agora, justamente durante essa escalada de violência e de conflito entre as pessoas, para que a gente possa falar novamente de juntar as pessoas e não de afastar", continua.
Nesta terça-feira, o fogo simbólico foi aceso com a luz do sol, com o uso de um espelho. "É uma das tradições mais bonitas que tem, né? De uma coisa muito pura. Na verdade, é a energia fundamental, pois o sol gera toda energia para a gente, para as plantas, para os animais. O sol é vida. Isso é importante para a gente perceber o valor que é a vida no nosso planeta e também para a gente pensar que depende disso", alerta o designer brasileiro.
"A gente precisa preservar essa simplicidade. E quando a gente pensa em sustentabilidade, pensa em meio ambiente. Eu acho muito interessante o fato de eles estarem trazendo a tocha por um veleiro, porque você não tem emissão de carbono", observa Chelles sobre o projeto francês, lembrando que durante a Rio 2016 a equipe "pensou em várias formas de poder compensar carbono, chegando a testar o uso de etanol em vez de usar gás". Porém, as experiências com o combustível não foram muito bem sucedidas e optou-se pelo gás.
Expectativa para os Jogos em Paris
"Eu estou voltando a estudar francês. Eu tenho uma ligação cultural com a França bem forte, e vai ser muito emocionante. A expectativa é muito grande pelo fato de eles terem feito a cerimônia não no estádio fechado, mas sim em um local aberto, onde mais pessoas possam participar", avalia Chelles sobre a festa prevista para acontecer no rio Sena para a abertura dos Jogos Paris 2024. "Eu acho que foi uma ideia fantástica, de ter essa integração do evento com a cidade. Paris é muito especial, uma cidade icônica no mundo e eu acho que tem tudo para ser um dos momentos mais impactantes", acredita.
Gustavo Chelles ainda lembra que quando o espírito olímpico chega na cidade, muda tudo. "Você sente uma energia diferente. Eu acho que as pessoas vão começar a perceber", aposta. "Eu estava conversando com uma francesa com quem trabalho e ela dizia que sairia de Paris porque haveria muita gente. Eu falei: olha, pela minha experiência, não saia, participe, porque você não vai se arrepender. Vai ser uma coisa inesquecível. Traz uma energia muito bacana para o coração e para a mente também", relembra.
E se o fogo apagar?
À época da Rio 2016, o Brasil vivia um momento político turbulento, que acabou se refletindo no revezamento, alvo de vários protestos. "Tentaram apagar a chama várias vezes. Só que a gente fez o projeto tão bem feito que não conseguiram", diz orgulhoso. "Só em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, que pegaram a tocha e colocaram em um balde de água e aí conseguiram apagar", recorda Chelles sobre um dos momentos mais tensos do revezamento no Brasil.
Porém, "com a chama oficial vêm dois backups, em duas lanternas. Então, se a chama principal apaga, você usa o backup para poder reacender. Assim, teoricamente, não tem problema, porque de vez em quando apaga mesmo, às vezes dá algum problema, bate uma rajada de vento estranho", conta o designer. "Mas foi muito mais complicado do que todo mundo imaginava poder resolver a constância e a robustez da chama", finaliza o designer brasileiro.
Tue, 16 Apr 2024 - 272 - Mundial do Queijo do Brasil transforma São Paulo na “capital internacional” do produto
O Mundial do Queijo do Brasil 2024 começou nesta quinta-feira (11). A terceira edição da principal feira do setor no país acontece até 14 de abril e vai transformar São Paulo “durante quatro dias, na capital internacional do queijo”, garante Débora Pereira, mestre queijeira radicada na França e presidente do evento.
OMundial do Queijo do Brasil é promovido pela SerTãoBras, associação de produtores de queijos artesanais com mais de 250 associados, a maioria da agricultura familiar em 17 estados do Brasil. O evento, realizado em parceria com a Guilde Internationale des Fromagers, uma das maiores associações de queijeiros do mundo, presente em mais de 40 países, também conta com as parcerias do Mondial du Fromage da França e o Mondial de Fondue da Suíça.
A programação conta com 4 concursos, um internacional e três nacionais. O primeiro é um concurso de queijos e produtos lácteos, com mais de 1.300 produtos inscritos do mundo todo. Para isso, o evento contou com a colaboração do Ministério da Agricultura, que liberou a entrada desses queijos no país.
Os queijos estrangeiros, certificados, legalizados, vão entrar no Brasil com uma licença especial para participar do concurso. Quer dizer, eles não podem ser comercializados”, explica Débora Pereira, a primeira mulher brasileira a se tornar mestre queijeira.
O concurso de Melhor Queijeiro do Brasil visa “identificar os novos talentos da fabricação de queijo no país", explica Débora. O Melhor Queijista do Brasil reúne os comerciantes do produto, “uma classe que tem se fortalecido muito no país”, aponta.
A última competição nacional, a de Melhor Fondue, pode surpreender em um país Tropical, mas a queijeira garante que embora “o Brasil seja muito quente, as pessoas gostam muito de comer fondue”.
Profissionais franceses de renome mundial do setor do queijo vão presidir os concursos. Laurent Dubois, comandará o Concurso de Queijos e Produtos Lácteos, Dominique Bouchait, o de Melhor Queijista do Brasil, e Arnaud Sperat Czar, o de Melhor Queijeiro.
Fortalecer a cultura queijeira brasileira
Débora Pereira ressalta que o objetivo do Mundial do Queijo é fortalecer a cultura queijeira brasileira. Ela lembra que o Brasil é a “quarta potência mundial do leite”, mas a produção de queijos “de valor agregado maior, com novas receitas” ainda deixa a desejar. O consumo do produto no país não chega “a 7 kg por ano e por pessoa, enquanto na França são quase 30 kg”, compara.
O Brasil produz principalmente muçarela para a pizza, queijo prato para o sanduíche, queijo fresco, mas muitos produtos brasileiros têm conquistado cada vez mais prêmios internacionais. Para Débora Pereira, uma das hipóteses para explicar por que a produção brasileira tem chamado tanta atenção do mundo “é que o nosso leite é muito rico (...) e dá um gosto diferente, uma tipicidade diferente para esse queijo”. Uma característica que ele chama de “pegada do terroir”.
Clique na foto principal para ouvir a entrevista completa.
Fri, 12 Apr 2024 - 271 - "Betinho" é primeira produção brasileira em competição no Festival de Séries de Cannes
A série biográfica conta a trajetória do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, o irmão do Henfil da música “O Bêbado e a Equilibrista”.” Betinho: No Fio da Navalha” é a primeira produção brasileira a ser selecionada para o Festival Internacional de Séries de Cannes e a única na competição oficial da sétima edição do evento, que termina nesta quarta-feira (10).
“Betinho: No fio da Navalha”, produzida pela Globoplay em parceria com a AfroReggae, também foi a única série brasileira escolhida para participar do Festival de Berlim, em fevereiro. Agora, a produção está em Cannes concorrendo com sete obras televisivas do mundo todo a vários prêmios. A cerimônia de encerramento desta sétima edição do Festival Internacional de Séries de Cannes acontece nesta noite.
Júlio Andrade, que interpreta o Betinho, está na cidade da Riviera Francesa desde o dia 5 de abril, ao lado de vários outros integrantes da série criada por José Junior. Dois dos oito episódios foram exibidos em Cannes para “uma plateia lotada”. A recepção foi “muito emocionante” e “superou todas as nossas expectativas”, lembra o ator que também é codiretor da produção, ao lado de André Felipe Binder.
Mas Júlio Andrade prefere “não criar expectativas” sobre a premiação, garantido que já se sente “um premiado só de estar” em Cannes. “O principal de tudo é estar representando o Brasil com uma história tão importante quanto essa, de um herói brasileiro, senão, o maior ativista brasileiro da história”, afirma.
Ditadura Militar
Na década de 1970, Herbert de Souza (1935-1997) ficou conhecido como o irmão do Henfil (cartunista) através da música “O Bêbado e a Equilibrista”, interpretada por Elis Regina, que virou hino contra a Ditadura Militar. O sociólogo e militante de esquerda estava no exílio e só pôde voltar ao Brasil em 1979, com a Anistia.
Adiado por causa da pandemia, o lançamento da série neste momento em que o Brasil lembra os 60 anos do Golpe Militar é “uma coincidência”, mas a produção chega às telas oportunamente porque “no Brasil, nem todo mundo, principalmente os jovens de hoje não sabem que o Brasil passou por uma ditadura”, ressalta.
Júlio Andrade diz que a “missão” de “Betinho: No Fio da Navalha” é essa. Comentando a polêmica recente sobre a posição do presidente Lula de evitar os eventos sobre os 60 anos do Golpe, o ator disse que no Brasil precisamos “estar toda hora reafirmando que a Ditadura aconteceu, que isso foi um momento muito trágico para o povo brasileiro, e que a gente precisa lembrar pra que isso realmente não aconteça novamente”.
Combate à fome
Betinho enfrentou a Ditadura Militar, o exílio, a hemofilia, a Aids, que contraiu em transfusão, e dramas familiares, mas o combate à fome foi sua maior batalha. A série narra a trajetória do sociólogo, mas opta por um prisma pouco conhecido de sua vida, que são as suas relações pessoais. “A gente queria contar uma história de um herói, mas também de um herói com falhas. Um herói (...) que foi o pai do Brasil, ajudou tantas pessoas, mas não tinha vocação para ser pai do próprio filho”, revela Júlio.
O legado social e político deixado pelo ativista “é gigante”, resume. O ator e diretor espera que a série inspire “outras pessoas a seguirem o mesmo caminho da solidariedade, da igualdade”. Ele pensa que o Brasil “lá no fundo do seu âmago, é um país solidário. Eu acho que o Betinho veio para afirmar isso”.
Clique na foto principal para ouvir a entrevista completa.
Wed, 10 Apr 2024 - 270 - Trajetória “improvável” de migrante nordestina que virou executiva é publicada em livro na França
Uma ascensão social admirável que continua sendo uma exceção na tão desigual sociedade brasileira. Esse poderia ser o resumo de “Entre o Roçado e a Coca-Cola: uma sociobiografia”, livro da socióloga brasileira Priscila de Oliveira Coutinho que acaba de ser traduzido para o francês. Outro resumo possível seria: “a trajetória improvável” de uma migrante nordestina que virou executiva de uma multinacional no Rio de Janeiro.
“Entre o Roçado e a Coca-Cola: uma sociobiografia (Editora UFMG, 2022) é fruto da tese de doutorado de Priscila de Oliveira Coutinho na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O livro chega às livrarias francesas com o título: “Juscelina, transfuge de classe brésilienne” (Juscelina, trânsfuga de classe brasileira – PUR, 2023).
Priscila de Oliveira Coutinho, hoje professora da UFMG, analisou a trajetória “improvável” de Juscelina Gomes de Lima, uma paraibana que, como tantos outros nordestinos, deixou, ainda adolescente, uma pequena cidade do interior da Paraíba onde cresceu e migrou, no início dos anos 1970, para o Rio de Janeiro, onde estudou e virou executiva.
A sociobiografia contou com a participação ativa de Juscelina, mas também com entrevistas com familiares e amigos, e pesquisa de campo e documental. “O meu interesse era de compreender as articulações entre micro e macro contextos (...) por meio de trajetórias individuais e deslocamentos significativos no espaço social, ou seja, migração e mobilidade social ascendente me pareciam processos privilegiados para essa investigação”.
Trânsfuga de classe
O conceito de “trânsfuga” de classe, “muito caro à sociologia francesa”, diz a autora, é essencial nesse trabalho. “A noção destaca a constante tensão vivida por pessoas que foram socializadas em contextos com características sociais muito distintas” do meio para onde migraram, define a socióloga brasileira. Normalmente, essas análises de mobilidade social dizem respeito a uma ascensão social.
A autora ressalta que a trajetória de Juscelina é “bastante excepcional em diversos aspectos” e continua sendo uma exceção no Brasil, mesmo com as recentes políticas de inclusão e redistribuição de renda que permitiram uma certa mobilidade social no país.
“A exceção ajuda a precisar o que é estatisticamente mais frequente, mais provável na sociedade brasileira, que é bastante desigual em termos de oportunidade. (...) O Brasil é um país de baixa mobilidade social e ainda hoje ser mulher, nas regiões norte e nordeste, diminui as chances de ascensão”, afirma.
As estatísticas confirmam que quem é rico tende a se manter rico e quem é pobre tem poucas chances de melhorar de vida. “No Brasil atual, somente 2,5% dos filhos cujos pais estão no extrato mais vulnerável conseguem atingir o topo da estrutura social e de renda em uma única geração”, informa a socióloga.
“Odisseia de reapropriação”
A trajetória da Juscelina ajuda a repensar “as tipologias de migração e as experiências subjetivas das variadas trajetórias de migração que a gente tem no Brasil”. No início da pesquisa, a executiva afirmava que nunca voltaria para a Paraíba. No decorrer das entrevistas, ela toma a decisão radical e surpreendente de voltar para João Pessoa e de “resgatar” sua vida e cultura de origem.
Citando o sociólogo franco-argelino Abdelmalek Sayad, a professora ensina que “a ideia de retorno integra sempre a experiência migratória, ainda que ela fique presente (somente) como uma ideia”. O sociólogo francês Pierre Bourdieu chama esse retorno à terra natal ou à classe de origem de “odisseia de reapropriação”.
Clique na foto principal para ouvir a entrevista na íntegra.
Wed, 10 Apr 2024 - 269 - Em Paris, coordenadora do MST cobra de governo Lula orçamento para reforma agrária
Neidinha Lopes, coordenadora nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) do núcleo do Ceará, está na capital francesa onde debate as pautas da reforma agrária e da agricologia. Ela constatou a popularização do símbolo do movimento entre os mais jovens também no exterior e saudou as boas relações com o atual governo brasileiro, apesar de pedir ações concretas para a reforma agrária.
Luiza Ramos para a RFI
A ativista e outros membros de uma comitiva do MST vieram à França por meio de um convite do ex-jogador de futebol Raí, para acompanharem a inauguração da Rue du Dr. Sócrates, na Vila Olímpica de Paris 2024, no último dia 30 de março, em Saint-Ouen-sur-Seine, região metropolitana de Paris. Neidinha recorda à RFI a importância do futebolista ídolo brasileiro da seleção e do Corinthians, que também já foi homenageado pelo MST dando nome ao campo de futebol Dr. Sócrates, da Escola Nacional Florestan Fernandes - espaço de formação política do movimento - em Guararema, cidade do interior de São Paulo, no ano de 2017.
"Não era qualquer jogador, Sócrates era um grande defensor da democracia. A relação do Movimento com o Raí e a família de Sócrates já vem bem de antes. O Movimento também discute futebol e política entendendo que as duas coisas tem a ver (...) Fazemos futebol e política na Escola Nacional Florestan Fernandes", relata.
Na sua primeira visita a Paris, Neidinha Lopes conta que tem realizado articulações políticas com prefeitos e deputados franceses, para apresentar não somente a conjuntura política atual do Brasil, mas também para mostrar a pauta da reforma agrária e o debate da agricologia. Ela constatou que o Movimento dos Sem-Terra é muito conhecido e chegou a ser abordada nas ruas da capital francesa por pessoas que reconhecem o símbolo bordado no seu boné.
Diálogo aberto com o governo Lula
A dirigente compara o governo anterior, do presidente Jair Bolsonaro, a atual conjuntura política do Brasil: "O diálogo com o governo Lula tem sido muito positivo, principalmente por que nós, dos movimentos sociais, do MST, viemos de um momento anterior difícil, de um governo que criminalizada a luta. Hoje, mesmo sendo um desafio permanente, o governo senta com o movimento para discutir sobre a pauta", aponta.
O ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, disse em entrevista ao canal CNN esta semana que o relacionamento entre o governo e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) vive um momento positivo. Entretanto, Neidinha Lopes cobra que o governo precisa "colocar orçamento para a reforma agrária, pois ainda temos 70 mil famílias que vivem em acampamentos, então o governo precisa sinalizar".
Para ela, é preciso deixar claro o papel do Estado e o papel do movimento social. "Nosso papel enquanto movimento social é de pautar, é de cobrar e de reivindicar. E agora, na jornada de abril, nós vamos realizar ocupações de terras no país". A coordenadora acrescenta que o MST compreende toda a "onda fascista" que o país e o mundo passam, mas que o MST "espera que o governo sinalize para a reforma agrária".
Neidinha destaca ações importantes que o governo Lula ter retomado com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e ministérios de peso para a pauta. "Temos a perspectiva de que o governo possa apresentar algo estrutural para a reforma agrária que é estruturar os nossos assentamentos", ao mesmo tempo em que destaca a produção dos camponeses no uso da terra, principalmente na produção de grãos e leite, aponta a ativista.
"Moda MST" e os 40 anos em 2024
O logo do MST tem sido usado por jovens de todo o país e fora do Brasil em bonés e camisetas como um símbolo da esquerda e de apoio à luta, algo que Neidinha avalia como positivo.
"Isso nos surpreendeu, pois em vários espaços a gente se depara com a juventude e várias pessoas com o nosso símbolo, são pessoas que se identificam com alguma pauta; seja a educação, a agricologia, então a gente vê isso como positivo", confirma ela, que acredita que a "moda MST" seja uma forma de aproximar o diálogo com a sociedade.
"O nosso país não fez a reforma agrária. É necessária a distribuição de terras para que se tenha produção para que os camponeses possam produzir e as terras estarem nas mãos de quem verdadeiramente produz. As pessoas podem apoiar o movimento na defesa da reforma agrária e na defesa da democracia", acrescenta.
Um congresso acontecerá em julho no estádio Mané Garrincha, em Brasília, para marcar os 40 anos do MST. "O movimento tem 40 anos porque a sociedade apoio e apoia o MST", afirma Neidinha Lopes.
Fri, 05 Apr 2024 - 268 - Documentário experimental filmado em comunidade guarani concorre em festival latino de Paris
“A Transformação de Canuto” é produto da cooperação entre dois cineastas, Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, ambos com ampla experiência no projeto Vídeo nas Aldeias. Premiado no Idfa de Amsterdã e no Festival de Brasília, entre outros, o documentário é um dos destaques da segunda edição do Festival Latino-Americano de Paris, que acontece de hoje até domingo (7).
Por Patrícia Moribe
“Nosso filme é o resultado de mais de dez anos de uma parceria entre mim e Ariel, que somos diretores do filme, e é talvez a nossa primeira experimentação dentro do campo da ficção, dentro do universo guarani, de onde o Ariel é”, explica Ernesto de Carvalho, que conversou com a RFI em Toulouse, durante o festival Cinélatino. O longa agora concorre no Clap, em Paris.
“O filme conta a história de um homem que padecia de uma doença espiritual conhecida para os Mbyá-Guarani, que é a doença da transformação em onça, uma condição perigosa que pode acometer algumas pessoas. E a gente fala desse assunto, dessa história real, que aconteceu na aldeia onde o Ariel nasceu. Só que para a gente falar desse assunto, a gente acaba entrando em outras questões. Então, é um filme que no caminho conta várias histórias a partir da desculpa, digamos assim, de contar a história desse homem, Canuto”, relata o codiretor, que também é antropólogo de formação.
Rodado na fronteira entre a Argentina e o Rio Grande do Sul, o metadocumentário acompanha Ariel na encenação da metamorfose de Canuto em onça, com participação da comunidade Mbyá-Guarani local. “Propomos um jogo de cinema com a comunidade”, explica Ernesto, pois “é uma história sombria, delicada, perigosa”.
O cineasta explica que foi uma experiência imersiva, que impactou a vida tanto dos diretores, quanto da própria comunidade. Um dos desafios “foi lidar com a violência do processo colonial, com a violência da resistência pelos territórios”. Ele enfatiza que o cinema também é uma forma de soberania. “Podemos até chamar de soberania audiovisual, de ter o direito de contar as próprias histórias, assim como ter o próprio território, sobreviver nele, ser respeitado. É um cinema em desenvolvimento, é a construção do cinema indígena”, acrescenta o cineasta. “Politicamente isso é muito importante”.
Cinema de transformação
Ernesto de Carvalho explica que o objetivo principal do filme é que seja visto ao redor, principalmente da comunidade. “Qualquer filme tem capacidade de transformar a política de representação de uma comunidade”. Mas os impactos são múltiplos, acredita. O fato de circular no exterior permite a discussão do tema, com debates estéticos e políticos.
“Os festivais de cinema continuam sendo espaços fundamentais para os filmes poderem existir, encontrar caminhos para o mundo, enfim, para podermos sobreviver de fazer cinema. São espaços que mutas vezes tornam o que a gente faz ser valorizado no lugar de onde a gente saiu", constata.
Thu, 04 Apr 2024 - 267 - Relação de pai e filho é tema de longa brasileiro premiado na França
David é um jovem cineasta cearense radicado há dez anos em Portugal. Ele volta a Fortaleza para exibir seu primeiro longa, mas o lockdown da Covid muda o rumo de seus planos e o leva a um reencontro com o pai. Esse é o tema de “Estranho Caminho”, de Guto Parente, que levou a menção especial do júri do festival Cinélatino, de Toulouse, no último sábado (23).
Patrícia Moribe,enviada especial a Toulouse
O protagonista é vivido por Lucas Limeira, que representou o filme no festival, no sudoeste da França. “No recorte que é contado no filme, ele está voltando para a cidade natal dele para exibir o filme em um festival”, conta o artista. E de repente, é anunciado o primeiro lockdown. “Os voos são cancelados, o hotel onde ele está hospedado é fechado e aí ele tem que reencontrar o pai dele, com quem ele não fala há dez anos. E aí? E o filme se desenrola a partir desse reencontro de pai e filho”.
Para Lucas Limeira, o momento também foi de adaptações. “Eu estava em Fortaleza, terminando a graduação em teatro. Foi um momento de muitas adaptações. Eu fazia uma faculdade muito voltada para o corpo, de estar em movimento. E aí teve essa primeira adaptação de estudar teatro através de uma tela, por videochamadas”, relata. Ele acrescenta que a distância da família foi outro aspecto que marcou o artista.
“Acho que esse momento no Brasil foi bem difícil por causa do governo naquele momento, que era um governo que não estava dando a assistência necessária para a gente passar por essa situação. E artisticamente também foi um momento de reinvenção, porque tudo o que a gente estava fazendo artisticamente a gente teve que adaptar para as formas virtuais, para as redes sociais, para o YouTube. Então foi isso, um momento de muita tristeza e de muitas adaptações. A gente teve que se reinventar de muitas formas”, diz o artista.
O diretor Guto Parente escreveu o roteiro pensando na relação com o próprio pai, explica Lucas Limeira. “Para o brasileiro, é uma situação muito similar, que muita identificação essa relação entre o David e o Geraldo. Em outros locais, como aqui, as relações são outras. Eu me identifiquei muito com o personagem, com a relação de pai e filho, e consegui construir muito a partir da minha própria vivência, sobre as diferentes formas de se encontrar o amor".
Wed, 03 Apr 2024 - 266 - Celebrado no cenário mundial do jazz contemporâneo, Amaro Freitas lança disco Y’Y na Europa
Um momento "maravilhoso". Assim o pianista pernambucano Amaro Freitas resume a atual fase na carreira, marcada pelo lançamento de seu quarto álbum, Y’Y, uma criação inspirada em suas aventuras pela Amazônia. O disco, lançado no começo de março nos Estados Unidos, é apresentado na Europa em uma turnê de ritmo alucinante. Do início em Milão, em 21 de março, até o final, na portuguesa Ovar, em 20 de abril, serão 16 cidades e cinco países.
A carreira europeia vem se consolidando desde 2017, com a maior frequência de concertos pelos palcos da França e de outros países. “De lá para cá, a gente vem entendendo um pouco mais a conexão com esse continente, com as pessoas, e é um lugar totalmente diferente do Brasil. O que eu percebo é que as pessoas se sentem abertas, se sentem à vontade para querer trocar através da música, que a música pode ser um ponto de conexão espiritual”, afirma.
Amaro Freitas tem recebido elogios em artigos da crítica especializada em jornais como o americano The New York Times, o britânico The Guardiane o francês Libération. Ele é celebrado como um artista em ascensão que faz uma fusão do jazz com suas raízes musicais e influências diversas que vão do frevo da sua terra natal ao maracatu, baião e ciranda, além de ritmos afro-brasileiros.
Sua história também é realçada para destacar sua trajetória musical singular. O pai introduziu a música na sua vida ainda criança e até os 15 anos só escutava músicas evangélicas. A mudança de rota veio com a descoberta do pianista americano Chick Corea, uma lenda do jazz. “Isso transformou a minha vida, a forma de perceber música e um direcionamento de querer viver desse tipo de música, que é a música improvisada, o jazz”, contou na entrevista à RFI.
Jazz "descolonizado"
Esse despertar o levou a frequentar escolas de música e se formar na universidade. Neste período se envolveu com músicos de jazz e passou a observar os tradicionais estilos nordestinos com ouvidos mais atentos.
"De uma certa forma, eu acabei sendo muito influenciado por esse tipo de música que já vem sendo representada de uma forma Internacional por grandes artistas brasileiros, como Tânia Maria, Naná Vasconcelos, Moacir Santos, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonte. Eu me sinto uma continuidade e me sinto privilegiado de poder ter tantas referências incríveis que me apontam caminhos de como trabalhar essa música brasileira”, afirma.
Essas heranças abriram um caminho moldado pelo conceito de “jazz descolonizado”, trilhado ao longo de sua carreira. Depois de seu disco de estreia Sangue Negro (2016), Amaro Freitas lançouRasif(2018), e Sankofa(2021), que fazem referências à identidade do território nordestino, mas por meio das influências ibéricas, árabes, negras e indígenas.
"Basicamente, toda a construção da história brasileira veio de um crivo branco. Então acho que é uma oportunidade de ir trazendo nomes como Rasif, Sankhofa, Y’Y. Não são nomes do colonizador, né? Não é um nome francês, não é um nome português, nem inglês, nem espanhol. É um nome árabe, um nome indígena e um nome africano”, comenta.
Aventura musical na Amazônia
Neste quarto álbum, Y’Y, que na língua da etnia Sateré-Mawé significa “água”, “rio”, Amaro Freitas mergulhou no universo amazônico. A convivência com indígenas e a imensidão da floresta resultou numa sequência de ritmos e canções que buscam traduzir suas experiências com o espetáculo do encontro entre o Rio Negro e o Solimões, das árvores milenares, do boto cor-de-rosa, da vastidão da floresta, das sensações de umidade e calor, e até das surpreendentes casas flutuantes.
“É um Brasil totalmente diferente do Brasil que a gente está acostumado a viver. Foi muito importante estar com a comunidade Sateré-Mawé e poder trocar um pouco de experiência, falar sobre o balanceamento do planeta, sobre a importância da floresta”, afirma o músico, que diz ter procurado reproduzir no disco os sons da floresta de uma forma contemporânea, usando técnicas do piano preparado, mas também polirritmia, isoritmia e ritmo negativo.
“É um estudo todo que envolve sensações e toda essa vivência. Talvez a gente não tenha a real dimensão da importância desse lugar, dessa diversidade e grandiosidade que é a Amazônia. De uma certa forma, eu me senti muito sensibilizado com tudo que vivi e queria poder compartilhar isso dentro da minha música”, conclui.
Wed, 03 Apr 2024 - 265 - Romance de estreia de Rita Carelli, ‘Terrapreta’ é recebido com elogios pela crítica francesa
“Terrapreta”, o primeiro romance de Rita Carelli, vencedor no Brasil do importante prêmio São Paulo de literatura em 2022, acaba de ser traduzido para o francês. Publicado pela editora Metailié, o livro chega às livrarias com elogios de críticos literários.
“Um primeiro romance de uma grande elegância de estilo” (Livres Hebdo) ou “um romance fulgurante” (Page des Libraires) são alguns dos elogios da imprensa especializada francesa sobre “Terre Noire”, traduzido para o francês por Marine Duval. A importante revista semanal Téléramadeu a nota três “T”, equivalente a muito bom, ao romance de Rita Carelli. “Quando na Amazônia, o mito prevalece sobre a realidade”, resume a crítica.
“Terrapreta” é um romance de formação que leva o leitor a uma aldeia do Alto Xingu, seguindo os passos de uma adolescente que viu a sua vida alterada subitamente depois da morte inesperada da mãe e vai morar com o pai antropólogo. Em contato com a cosmovisão dos indígenas, a adolescente se transforma. O livro articula tempos e lugares, transitando entre São Paulo, Xingu e Paris. Fala de povos indígenas, sua relação com a floresta e tradições, mas também denuncia o impacto das mudanças climáticas.
Rita Carelli não veio a França para participar do lançamento de “Terre Noire”, mas conversou com a RFIpelo telefone. Ela ficou surpresa com a recepção francesa positiva de seu primeiro romance.
Leia trechos ou clique na foto principal para assistir a entrevista completa
RFI: Você fala francês, já morou em Paris e seu pai, Vincent Carelli, tem origem francesa. O que está achando dessa recepção literária do livro aqui na França?
Rita Carelli: Eu estou muito contente. Acho que a França e o Brasil são países que têm um namoro, uma relação de curiosidade mútua. Mesmo assim, eu estou surpresa com a recepção de “Terra Preta” na França e muito entusiasmada porque a França realmente é um país de leitores. As pessoas leem, os jornalistas leem os livros, as pessoas publicam críticas e isso para quem escreve é profundamente gratificante.
A crítica francesa ressalta que o livro mistura antropologia, ecologia e ficção. O romance é escrito na primeira pessoa, levando o leitor a pensar que ele contém dados autobiográficos. É um livro autobiográfico?
Ele tem traços em comum com a minha vida, né? Eu de fato convivi com muitos povos indígenas, principalmente a partir do trabalho dos meus pais. A minha mãe era antropóloga e o meu pai é indigenista. Mas ele é um tanto ficcional também. Ele tem um ponto de partida bastante autobiográfico, que é a morte da mãe. Eu de fato perdi minha mãe aos 14 anos. É um ponto de transformação dessa personagem que vai se abrir a outros mundos, a outras formas de viver. Mas depois o romance toma o seu rumo. As relações que a Ana vai ter com os seus amigos indígenas dentro da comunidade é realmente uma via ficcional.
No final, há uma observação alertando que todos os personagens são fictícios e que mesmo as palavras indígenas utilizadas são inventadas. Por que essa advertência, esse cuidado?
Eu bebi de um complexo cultural que é o Alto Xingu, que é um conjunto de vários povos divididos, às vezes, em mais de uma aldeia. E eu não quis localizar o livro numa única aldeia porque eu fiz mais de uma viagem para o Alto Xingu em diferentes aldeias. Então, eu criei essa língua, enfim, essas palavras, para deixar claro que eu estava tratando de uma região que, claro, tem traços culturais comuns, mas tem também suas diferenças. Foi a forma que encontrei de também usar histórias que ouvi em diferentes aldeias e fazer um pouco essa síntese cultural que tem no livro.
Seu livro coloca essa questão central da mediação. Hoje há emergência de muitos escritores indígenas, como Ailton Krenak que assina a orelha do seu livro e foi o primeiro indígena nomeado para a Academia Brasileira de Letras, e o debate sobre a pertinência dessas histórias serem contadas por pessoas de fora das comunidades. Como você se situa nesse debate?
Atuando em diferentes frentes. Inclusive, os livros do Ailton sou eu que organizo, assino a pesquisa. Tem a minha produção pessoal, mas tem também eu colocar a minha caneta à disposição. Eu estou sempre articulando, colaborando com a obra justamente de autores indígenas. Eu acho que a gente está nesse momento em que o lugar de fala tomou uma dimensão muito importante. É um momento muito bonito. Eu vou costurando meu caminho a partir dessas alianças. No meu trabalho, eu tomo muito esse cuidado de não falar pelos indígenas. Por isso que tem essa personagem, que é uma personagem não indígena, que está ali aprendendo com eles, né? Mas é essa personagem que dá a mão para o leitor e que leva o leitor para esse passeio.
Hoje, existem inúmeros livros recentes, livros de ficção, sendo publicados sobre a Amazônia. Tem um efeito de moda ou é a urgência climática, essa ameaça enorme, que tem feito isso?
Eu acho que as duas coisas e aí você vai ver autores fazendo isso com mais ou menos propriedade, com um mergulho mais ou menos profundo. Eu acho que a nossa sociedade está se dando conta de que a gente está num beco sem saída, que está exaurindo o planeta. Nossa sociedade está encontrando barreiras físicas para essa ideia de progresso incondicional, infinito, para esse impulso consumista inabalável. No momento em que algumas pessoas começam a perceber que talvez essa forma de estar no planeta não seja mais viável, é natural que a gente comece a se voltar para outras formas de estar no planeta. No Brasil, obviamente, a gente começa a se voltar para os pensadores de matriz africana e para os pensadores indígenas. Eu acho que é um fenômeno também coletivo, que é uma resposta à nossa crise civilizatória.
Você disse que sempre volta às aldeias indígenas onde você cresceu. No final do livro, a Ana volta à aldeia num momento em que ela está queimando. A reação dos indígenas em relação a essa destruição é um pouco menos alarmista do que a nossa, como você mostra no livro?
No livro, é muito latente o estrago ambiental, a transformação ocorrida durante apenas 15 anos. Eu queria que o livro tivesse também esse caráter de denúncia, esse caráter político. O Ailton (Krenak), fala isso: ‘nós, povos indígenas, já vimos muitos fins de mundo. Talvez vocês estejam enfrentando o primeiro de vocês agora’. Eu acho que isso marca de fato uma outra forma de encarar esse fim de mundo que a gente está vivendo agora.
Tue, 02 Apr 2024 - 264 - Historiadora francesa lança livro sobre humor de protesto publicado durante ditadura no Brasil
A RFI conversou com a historiadora francesa especializada em Brasil Mélanie Toulhoat, que lança agora em abril o livro Rire de la dictature, rire sous la dictature (Rir da ditadura, rir sob a ditadura), resultado da conclusão de sua tese de doutorado na Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3 - USP. A pesquisa é dedicada ao humor gráfico e de protesto publicado na imprensa independente durante a ditadura militar no Brasil.
A obra é publicada pela Presses Universitaires de la Sorbonne Nouvelle. "É um livro que sai da minha tese de doutorado, que fiz entre 2013 e 2019, entre a França e o Brasil, entre a Paris 3 e a USP. Eu passei muito tempo durante esses anos pesquisando no Brasil, no Rio de Janeiro , principalmente, mas também em São Paulo e Belo Horizonte. E esse livro é uma versão desse trabalho de investigação, de pesquisa de muitos anos sobre o papel político de várias formas de humor gráfico, a caricatura, a charge, o quadrinho, a gravura e alguns cortes e colagem de fotografias que foram publicadas em diversos jornais e revistas de oposição independente durante mais de 20 anos de ditadura militar", relata Mélanie Toulhoat.
Arquivos censurados
"Eu conversei com o Nani, o Ernani Diniz Lucas (1951-2021), que infelizmente faleceu durante a pandemia, mas que foi um grande cartunista e que me deu várias entrevistas para tentar entender o papel dele e de outros cartunistas durante o processo da ditadura militar no Brasil. E ele me deu acesso a uma pasta de desenhos censurados que estavam na casa dele, guardados há anos, e me autorizou a trabalhar a partir desses desenhos censurados, de quando ele trabalhava no jornal Pasquim",conta a pesquisadora francesa.
"Então, para mim, esse acervo privado de desenhos censurados foi algo super interessante para perceber as motivações da censura, a lógica sensorial, porque também tem uma certa materialidade nesses desenhos. Eles são riscados, têm cruzes vermelhas, dá para ver a marca física e gráfica da censura nesses desenhos", explica.
"Esse acervo foi muito importante, mas também trabalhei muitos arquivos públicos da imprensa independente brasileira. Fiquei lendo páginas e páginas de jornais, de revistas, para reproduzir o conteúdo gráfico de várias fontes, de várias origens e o acervo do Nani é um desses acervos sobre os quais eu trabalhei", detalha.
Longa escola de tradição gráfica
"O que eu tentei mostrar nesse livro é que a ação gráfica e política dos cartunistas durante a ditadura vem de uma longa escola de tradição gráfica, tanto no Brasil como na França. Que até que se cruzam, circulam e se misturam", diz Mélanie Toulhoat. "Essas influências, esses modelos transatlânticos, eles também tiveram um impacto nessa produção gráfica", sublinha.
"Eu também tentei mostrar na minha tese e no livro que não foi só o Pasquim que contribuiu com esse humor de protesto. O Pasquim foi um deles, um desses jornais, mas houve muitos outros. O Pasquim ficou mais famoso, digamos, o mais conhecido, mas eu tentei mostrar também uma diversidade tanto temática quanto geográfica, e de classe social, mas também de gênero [no humor gráfico da época]", explica a autora.
Muito além da Zona Sul do Rio de Janeiro
"Era preciso mostrar que a imprensa independente não era só uma, não era só um modelo, esse Pasquim da zona Sul do Rio de Janeiro, homens brancos de uma classe elitista. E sim, eu tentei mostrar que era muito mais diverso do que do que isso também em termos de temática, em termos de relação com as autoridades, com o proibido, com o autorizado", explica.
"Claro que, para a minha tese, tive uma dupla orientação, uma dupla historiografia, uma dupla formação intelectual entre a França e o Brasil. O período do meu doutorado foi marcado pelos atentados do Charlie Hebdo, na França, e pela eleição do Bolsonaro. O período todo abrangeu esses eventos e os aniversários do golpe militar etc. Então, esses eventos também alimentaram, de certa forma, a reflexão ou as problemáticas sobre o trabalho e sobre o papel político do humor gráfico e do desenho político na sociedade francesa", diz a pesquisadora.
*Para ouvir a entrevista na íntegra, clique no botão PLAY no alto desta matéria
Sun, 31 Mar 2024 - 263 - “É uma aventura humana e musical”, diz diretora do Festival de Choro de Paris que completa 20 anos
A 20ª edição do festival de Choro de Paris começa nesta sexta-feira (29) com o concerto de um dos maiores expoentes da música instrumental brasileira, Yamandú Costa. Durante três dias, a edição comemorativa oferece uma programação de concertos de grupos e artistas de várias regiões do país, além de ateliês instrumentais e rodas de choro.
“É uma bela aventura pela qualidade da organização e quantidade de músicos que a gente consegue trazer do Brasil. Cada ano organizamos para trazer pessoas de várias regiões do Brasil e de diversos estilos de choro e de musical instrumental brasileira”, diz Maria Inês Guimarães, diretora e fundadora do festival.
O evento ganhou espaço na agenda cultura da capital francesa e também no cenário europeu, segundo ela. “Hoje esse evento se impôs como um grande momento festivo do choro fora do Brasil”, afirma.
Nessas duas décadas de organização do festival, que não parou nem durante a pandemia, Maria Inês constatou que o estilo musical caiu no gosto dos parisienses, e dos franceses, em geral. “O público francês é fiel, e gosta não apenas de ouvir, mas também de tocar”, garante.
Como é tradição do Festival, além dos concertos são oferecidos 12 ateliês instrumentais para os praticantes do choro, amadores ou profissionais. “A gente aproveita para ensinar e mostrar instrumentos que dificilmente são encontrados no país como pandeiro, cavaquinho e o violão de sete cordas, e como fazer arranjos, variações e improvisações para iniciantes ou em nível avançado, que permitem melhorar a competência musical e conhecer os estilos do choro”, acrescenta.
Programação
Na programação desta edição comemorativa vão se apresentar o grupo Choro Seresta, de Curitiba, Alexandre Rodrigues, de Recife, Carlinhos Patriolino e o Choro Cabuloso, do Ceará, além do grupo Toca de Tatu, que volta a se apresentar no festival depois de 10 anos.
Desde a primeira participação, o grupo Toca de Tatu, de Belo Horizonte, manteve uma parceria musical com a diretora do festival, Maria Inês Guimarães, que também é pianista.
“Desde que viemos pela primeira vez, mantivemos uma parceria musical. Algumas músicas foram gravadas quando estivemos aqui, e cada vez que a Maria Inês ia ao Brasil, nós aproveitávamos os encontros para afinar mais essa parceria”, explicou Luísa Mitre, pianista e integrante do Toca de Tatu. O quarteto conta também com os músicos Lucas Telles, no violão, Abel Borges, na percussão, e Lucas Ladeia, no cavaquinho.
“É uma experiência maravilhosa poder participar do Festival e agora voltando para lançar um disco que é a materialização da nossa parceria”, detalha Luísa em referência ao álbum “Ruídos de Costura”. O trabalho, que conta com a participação especial da saxofonista Noemi Guimarães, tem composições do grupo e da pianista Maria Inês Guimarães e será lançado oficialmente neste sábado no Festival de Choro de Paris.
Fri, 29 Mar 2024 - 262 - “O cinema me deu cidadania”: Antônio Pitanga é homenageado no Festival de Cinema Brasileiro de Paris
O já tradicional Festival de Cinema Brasileiro de Paris, dirigido por Katia Adler, começa nesta terça-feira (26). Até o dia 2 de abril, 31 filmes serão exibidos mostrando a diversidade da produção cinematográfica brasileira, de ontem e de hoje. O ator e diretor Antônio Pitanga, ícone do Cinema Novo, é o homenageado desta 26ª edição.
Antônio Pitanga desembarcou quase diretamente do Brasil nos estúdios da RFI para a entrevista sobre a homenagem do Festival de Cinema Brasileiro de Paris à sua carreira excepcional. Depois da longa viagem, o ator e diretor de 84 anos estava em excelente forma. “Durmo igual criança em avião”, garantiu, sorrindo. Nem o frio que voltou a fazer nesse início de primavera na França o incomodou. “Agora, faz quase o mesmo tempo em qualquer lugar", disse, protegido por um elegante chapéu de feltro e um blazer de lã.
Nessa homenagem especial que o Festival faz a Antônio Pitanga, seis filmes serão exibidos, entre eles “Na Boca do Mundo”, dirigido por ele em 1978; “Barravento”, o primeiro filme de Glauber Rocha e precursor do Cinema Novo, estrelado pelo ator; e “Pitanga”, documentário sobre a sua vida e obra, dirigido por Beto Brant e Camila Pitanga, filha do ator.
Antônio Pitanga é uma “lenda viva do cinema brasileiro”. Ele atuou em mais de 70 filmes desde o início dos anos 1960. Considerado um “ícone do Cinema Novo”, ele acredita que o movimento “continua influenciando de uma maneira extraordinária” a produção cinematográfica brasileira “porque o povo, o ser humano que não olha pelo retrovisor, não vê a sua memória”. O ator avalia que essa “juventude de hoje teve e tem aonde beber esta água”.
‘Negro em movimento’
O cartaz da 26ª edição do Festival de Cinema Brasileiro de Paris simboliza a carreira do ator negro. A imagem traz no centro um punho preto cerrado, envolto em um negativo de cinema. “É um cartaz bem significativo, que me tocou muito porque é toda a minha formação. A formação do povo brasileiro vem exatamente desse gesto de poder”, indica, lembrando que é baiano e que esse gesto também lembra a “figa”. “Aí está a herança da mãe África, o movimento de uma cultura genuinamente brasileira, a força do povo baiano, brasileiro, o Cinema Novo. Aí está o Brasil. Aí está o grito de liberdade”, considera.
Pitanga recorda que vem de uma família muito pobre e que o cinema lhe deu “cidadania”. Quando começou a carreira, os atores negros se contavam nos dedos. Hoje, ele vê com alegria “essa avalanche que está chegando em boa hora” de bons atores e diretores pretos.
“Eu me sinto recompensado, dizendo que tem valido a pena essa luta e essa caminhada”.
No entanto, ele sabe que essa representatividade “ainda é pouca” em um país onde os homens e mulheres pretos e pardos representam 54% da população.
O diretor e ator se define como “um preto em movimento”, mas que não pertence a nenhum tipo de movimento. “Eu vim com essa leitura de tantas posições contra a invisibilidade, contra o racismo, contra todo o tipo de preconceito. A gente quebra os grilhões, as amarras. Eu quero a liberdade, eu quero voar”, aponta.
Acompanhe o canal da RFI Brasil no WhatsApp.
Resistência
O cartaz também simboliza a resistência do cinema brasileiro e do festival parisiense, fundado por Katia Adler em 1999. Desde então, apesar de várias dificuldades, o evento tem sido realizado anualmente. “É muito importante dizer que a gente nunca parou, mesmo com pessoas ou governos querendo que a gente parasse. A cultura não vai parar. A cultura é muito forte, a arte é muito forte. Nós precisamos da arte. E aí o cartaz para mim é cinema na veia, é arte na veia, é a resistência”, afirma a diretora da associação Jangada organizadora do evento.
Este ano, 31 filmes, entre ficção, documentários e animação serão exibidos de 26 de março a 2 de abril, no cinema Arlequim, no 6° distrito de Paris. Seis longas estão na competição. “Uma belíssima seleção”, antecipa Kátia Adler, que abre espaço para muitos “jovens diretores”. A programação revela uma “presença grande da Bahia”, a “diversidade” do cinema brasileiro, tanto temática quanto de formatos, e muita música.
O festival será aberto com o documentário “Nas ondas de Dorival Caymi”, de Locca Faria, e encerrado pela cinebiografia “Meu nome é Gal”, de Dandara Ferreira e Lô Piliti, e pelo documentário “Madeleine”, sobre o maior evento cultural brasileiro de Paris, de Liliane Mutti. Kátia Adler não se impõe nenhum critério de seleção e monta a programação para trazer o público, principalmente os jovens, para a sala de cinema.
Outro objetivo é o resgate da memória. “Vamos comemorar, entre aspas, o 31 de março dizendo: ‘democracia sempre’. Apesar do Lula não querer muito falar sobre isso, eu não concordo com ele. Nós temos sim que falar do golpe que houve no Brasil e que foi péssimo para o Brasil”, aponta a diretora do festival. No domingo (31), haverá uma programação especial para lembrar os 60 anos do Golpe Militar de 1964 com a exibição, entre outros, da animação “Mataram o pianista”, de Fernando Trueba e Javier Mariscal; “A Batalha da rua Maria Antônia”, de Vera Egito, e o documentário “No Céu da Pátria nesse Instante”, de Sandra Kogut.
O festival, principal vitrine do cinema brasileiro na França, é também um momento de troca e encontros entre atores, diretores, críticos e o público parisiense. Este ano, além de Antônio Pitanga, vários convidados de prestígio marcam presença: os cineastas Murilo Benício (“Pérola”), Luiz Fernando Carvalho (“A Paixão Segundo G.H.”), Bia Lessa (“O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho”), Marcelo Botta (“Betania”) e Christiane Jatahy (“A Falta que nos Move”); e os documentaristas Camila Pitanga, (“Pitanga”); Helio Pitanga (“Nas Ondas de Dorival Caymmi”), Liliane Mutti (“Madeleine à Paris”) e Sandra Kogut (“No Céu da Pátria Nesse Instante”).
Haverá ainda o lançamento do livro “A Nudez da Cópia Imperfeita”, do artista Wagner Schwartz e um encontro com Marcelo Freixo, presidente da Embratur.
Clique na foto principal para assistir a entrevista completa de Antônio Pitanga e da diretora do Festival de Cinema Brasileiro de Paris, Katia Adler.
Tue, 26 Mar 2024 - 261 - "Nem tudo que é brasileiro tem que ser rústico, colorido e com plumas", diz curadora em Paris
Cada vez mais, a arte e o design brasileiros ganham espaço no exterior. Porém, para muitos artistas ter uma obra exposta na França não é um objetivo fácil de ser alcançado. Foi para ajudar novos nomes a conquistarem a cena internacional que a brasileira Patrícia Monteiro Leclercq criou a Bref Design e Arte. A RFI Brasil conversou com ela sobre o projeto de curadoria efêmera que tem dado oportunidade a novos talentos.
"Eu sou um projeto nômade. Eu não tenho um lugar fixo em que eu apresento artistas e designers brasileiros. As minhas exposições são em lugares efêmeros", explica. "Eu sempre foco na arte e no design contemporâneo, no designcolecionável. O formato principal do meu projeto é a casa de um colecionador. Então você entra como se realmente alguém morasse ali", completa.
Patrícia fala sobre o interesse pelo design brasileiro na Europa. "Hoje em dia, as pessoas conhecem pelo menos alguns nomes, talvez no design mais vintage, como Sérgio Rodrigues, alguns arquitetos como Oscar Niemeyer e designers que têm uma influência na arquitetura francesa. Mas também da cena contemporânea, como Vik Muniz. Porém, já surgem outros nomes", afirma.
Quebrar clichês
"Algumas pessoas ficam muito surpresas com o que eu apresento no design ou na artecontemporânea, com o refinamento das coisas que podem ser feitas. Uma das missões do meu projeto é quebrar o clichê de que tudo que é brasileiro tem que ser rústico, colorido ou com plumas. A gente também tem um acabamento maravilhoso, sofisticado", diz.
Mesmo que artistas brasileiros consigam expor numa galeria francesa, ainda é difícil entrar num museu ou em uma exposição permanente. "Isso era uma coisa que me preocupava. Eu não gostaria que fosse só uma exposição e depois eu digo adeus para esse artista. A gente faz um trabalho contínuo, de longo prazo, como uma consultoria", diz. "Eu sempre vou buscar oportunidades para esse artista para que ele esteja em uma galeria, para que ele entre em grandes coleções francesas".
Nos últimos anos, Patrícia já facilitou a entrada de artista brasileiros em coleções de países como Marrocos, Itália e França, país que, de acordo com ela, voltou a ser o epicentro das artes após a saída da Inglaterra da União Europeia. "Eu acho que para os nossos artistas abriu um leque muito grande. É um sonho de todo artista estar num grande museu, fazer parte da cultura de algum país e, principalmente, aqui na França. Por isso que até o nome do meu projeto é Bref, que em francês é como se fosse o nosso 'enfim'. E eu achei perfeito porque as minhas exposições são resumidas, eu exponho e desapareço. Mas, ao mesmo tempo, tem o BR de Brasil e França. Então, eu acho que dá a bossa", comenta.
E como a curadora escolhe os artistas? "Hoje eu tenho as duas situações: o Instagram é uma grande vitrine. Eu tenho uma lista de pessoas interessadas em expor, mas eu faço essa curadoria e eu busco com um critério exigente", explica. "Eu acho que tem que ser diferenciado justamente para a gente sair do clichê, né?".
As exposições podem acontecer em lugares inusitados. "Geralmente são apartamentos que existem em Paris, que você aluga por um período de cinco a dez dias. Eu gosto de você estar entrando na casa de um colecionador, que vai ter a arte visual, vai ter quadros nas paredes, vai ter a poltrona que ele senta, tem uma história. Eu acho que o storytelling é o que modifica e traz uma compreensão", diz. "Já teve algumas ocasiões de eu expor em embaixadas e agora tem uma próxima na UNESCO. Então, são lugares realmente inusitados", conclui.
Fri, 22 Mar 2024 - 260 - “A Noite das Garrafadas” é tema de curta em competição no festival de Toulouse
Ao revisitar “A Noite das Garrafadas”, um episódio assíduo na lista de decorebas de história do Brasil para o vestibular, mas pouco aprofundado, o diretor Elder Gomes Barbosa constrói uma visão atualizada das relações sociais no centro do Rio de Janeiro. O documentário de curta-metragem, em competição no festival Cinélatino de Toulouse, revela o quanto o passado colonizador ainda é palpável no presente.
Patricia Moribe, enviada especial a Toulouse
“A Noite das Garrafadas aconteceu em 1831. Do vestibular, a gente só entendia que era o conflito entre brasileiros e portugueses, que aconteceu no centro da cidade, que houve arremessos de garrafas de um lado e do outro”, relata o cineasta. “Só que pesquisando mais para o filme e encontrando documentos que estavam perdidos na Biblioteca Nacional, a gente chegou a uma outra visão também da Noite das Garrafadas, que o lado dos brasileiros era principalmente compostos de ex-escravizados e de escravizados. Então, não foi só um confronto entre nações, mas também um confronto racial, confronto de entre senhores e escravizados”.
“O filme nasceu, primeiro, de um amor meu pelo centro do Rio de Janeiro e pela história que ela carrega”, diz o diretor Elder Gomes Barbosa, um apaixonado pela cidade. “Foi um redescobrimento dessa história que foi apagada pelo tempo”.
Para pesquisar o fato histórico, o documentarista mergulhou no cotidiano do centro carioca, colhendo depoimentos dos frequentadores da região. “Enquanto a gente estava pesquisando e lendo os textos sobre o que aconteceu na N oite das Garrafadas e fazendo essas visitas de locação, a gente foi, claro, percebendo várias continuidades entre esse episódio histórico e o que acontece hoje ainda na Rua da Quitanda e dentro da sociedade brasileira".
Alegoria da sociedade brasileira
“A Rua da Quitanda funciona no filme também como uma alegoria da sociedade brasileira e da sociedade do Rio de Janeiro”. Além disso, a rua funcionou como o fio condutor do filme. "A gente quis que o fio condutor fosse um dia inteiro nessa rua onde pessoas escravizadas vendiam nas quitandas legumes e frutas. A gente quis pegar trabalhadores que também hoje em dia ainda trabalham nas ruas, ou seja, não têm estabelecimentos ou lojas, mas sim instalam barracas nas ruas. Então a gente filmou trabalhadores que vendiam suco de laranja, que vendiam balas, que vendiam roupas, enfim, pessoas que habitam essa rua. E a gente foi desenvolvendo uma paixão muito grande também por esses personagens."
O diretor destaca ainda a descoberta de que o símbolo da Policia Militar do Rio de Janeiro na época, em 1831, continua o mesmo, vinculado aos produtores de café, de cana de açúcar e à coroa imperial”, diz Barbosa. O filme também trabalha com projeções feitas nas fachadas da rua, de noite, com figuras da época, como Dom Pedro I. “Como se fossem fantasmas”, diz o cineasta.
O festival Cinélatino de Toulouse acontece até 24/03/24.
Thu, 21 Mar 2024
Podcasts similares a RFI Convida
- Contraditório Antena1 - RTP
- Prova Oral Antena3 - RTP
- Vamos Todos Morrer Antena3 - RTP
- isso não se diz Bruno Nogueira
- Miguel Sousa Tavares de Viva Voz Expresso
- FALA COM ELA INÊS MENESES
- Contra-Corrente José Manuel Fernandes e Helena Matos
- Guerra Fria José Milhazes e Nuno Rogeiro
- Rádio Comercial - O Homem que Mordeu o Cão Nuno Markl
- A História do Dia Observador
- E o Resto é História Observador
- Eu estive lá Observador
- Gabinete de Guerra Observador
- Expresso da Manhã Paulo Baldaia
- Falando de História Paulo M. Dias & Roger Lee de Jesus
- Contas-Poupança Pedro Andersson
- Rádio Comercial - Poucos Mas Bons Pedro Ribeiro
- Fora do Baralho Rádio Observador
- Renascença - Extremamente Desagradável Renascença
- RFM - Fridayboyz RFM
- Irritações SIC
- Isto É Gozar Com Quem Trabalha SIC
- Eixo do Mal SIC Notícias
- Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer SIC Notícias
Otros podcasts de Sociedad y Cultura
- Hondelatte Raconte - Christophe Hondelatte Europe 1
- L'Heure Du Crime RTL
- Parlons-Nous RTL
- Affaires sensibles France Inter
- Les histoires incroyables de Pierre Bellemare RTL
- C dans l'air France Télévisions
- La libre antenne - Olivier Delacroix Europe 1
- Au Cœur de l'Histoire - Des récits pour découvrir et apprendre l'Histoire Europe 1
- Faites entrer l'accusé RMC Crime
- Les Récits extraordinaires de Pierre Bellemare Europe 1 Archives
- CRIMES • Histoires Vraies Minuit
- Confidentiel RTL
- Les pieds sur terre France Culture
- Enquêtes criminelles RTL
- Le Coin Du Crime La Fabrique Du Coin
- L’heure du crime : les archives de Jacques Pradel RTL
- Jour J RTL
- Grand bien vous fasse ! France Inter
- Libre antenne week-end - Valérie Darmon Europe 1
- Ça peut vous arriver RTL