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RFI Convida

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RFI Brasil

Entrevistas diárias com pessoas de todas as áreas. Artistas, cientistas, professores, economistas, analistas ou personalidades políticas que vivem na França ou estão de passagem por aqui, são convidadas para falar sobre seus projetos e realizações. A conversa é filmada e o vídeo pode ser visto no nosso site.

280 - Romance histórico sobre rendeiras do interior de Pernambuco ganha tradução na França
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  • 280 - Romance histórico sobre rendeiras do interior de Pernambuco ganha tradução na França

    A escritora e roteirista carioca Angélica Lopes acaba de lançar na França a tradução de seu primeiro romance, "A Maldição das Flores" ("La Malédiction des Flores"), editado pelo prestigiado selo Seuil. Neste romance histórico, ela narra a intrigante história de um grupo de mulheres rendeiras do interior de Permambuco que inventa um código com os pontos da renda e lacês para poder se comunicar e salvar uma amiga de uma situação de violência doméstica, nos anos 1920.

    "Como todo grupo oprimido, que não tem como se comunicar ou lutar de maneira muito ruidosa, elas inventam uma técnica discreta, silenciosa, para conseguir passar mensagens e elaborar a fuga da amiga", explica Angélica em entrevista à RFI

    A história é ambientada na região onde nasceu a bisavó de Angélica, um universo que sempre chegou aos ouvidos dela por meio de histórias contadas pela mãe ou por seu avô. Nascida no Rio de Janeiro, Angélica foi atraída pela região dos ancestrais – "dominada por coronelismos e outras leis, leis dos homens" –, uma realidade bem diferente do espaço urbano onde cresceu.

    "Esse livro veio de um desejo meu de falar sobre a união entre mulheres, de conexão entre mulheres, de luta por emancipação", explicou.

    A trama é alimentada pela maldição que atinge a família Flores. Todos os homens que passam pela vida das mulheres dessa família morrem cedo. Elas se casam, o marido morre, os filhos homens morrem ainda crianças. A partir de algumas gerações, o número de mulheres na casa aumenta.

    A cidade cria uma narrativa de que aquelas mulheres são amaldiçoadas, uma narrativa que "se você se aproximar das Flores, você pode morrer". Mas ao ficarem isoladas e não terem a vigilância de marido, irmão, elas se tornam muito mais livres do que todas as outras mulheres da cidade.

    "A maldição, na verdade, é uma bênção para elas naquela época, porque elas faziam a renda, elas tinham o próprio sustento pelas mãos", destaca a autora.

    Rendeiras: uma história de luta e independência

    Foram freiras francesas que introduziram a renda Renascença no Nordeste. Mas as religiosas teciam as peças em segredo nos conventos. Na pesquisa que Angélica fez em Pernambuco para a construção do romance, ela encontrou rendeiras que tiveram um papel determinante para a democratização da atividade, gerando renda para uma região sem recursos. Histórias reais dessas heroínas se entrelaçam com os personagens de ficção. 

    "Maria Pastora, por exemplo, trabalhava num convento e aprendeu a fazer renda observando os movimentos das religiosas. Ela compartilhou a técnica com as suas amigas e familiares, fazendo a renda se espalhar por Pernambuco", conta. A cidade de Pesqueira, segundo a escritora, "tornou-se um grande polo de produção, gerando renda para todo mundo". Outra personagem que ela destaca é uma abolicionista do Recife que organizava manifestações feministas, participou da luta pelo voto feminino e pelo divórcio. 

    Angélica Lopes tem 20 livros publicados, mas a maioria para o público infantojuvenil. Com este primeiro romance, ela diz que satisfaz um desejo de se dedicar a uma literatura de maior complexidade. "Eu já estava sentindo nos meus dois últimos livros juvenis, que eles já tratavam de temas adultos. Eram livros que tratavam de depressão, um outro de bullying. Apesar de serem temas também jovens, eles eram mais complexos, então eu já tinha essa vontade de buscar uma literatura um pouco mais desafiadora, um texto mais desafiador", diz. 

    "A Maldição das Flores" já foi traduzido ou está sendo traduzido para França, Itália, Estados Unidos, Portugal (uma adaptação), Turquia, Romênia, Polônia e talvez seja brevemente publicado na Coreia do Sul. No Brasil, o livro é editado pela Planeta.

    Sat, 27 Apr 2024
  • 279 - "É um presente ocupar o pavilhão de artes aplicadas na Bienal de Veneza", diz Beatriz Milhazes

    A convite do brasileiro Adriano Pedrosa, curador da 60ª Bienal de Veneza, e do Victoria and Albert Museum (V&A) de Londres, a artista carioca Beatriz Milhazes expõe até novembro obras monumentais no Arsenale, o pavilhão dedicado às artes aplicadas na mostra internacional mais antiga do mundo. Vinte e um anos depois de estrear em Veneza, que representou para ela "um divisor de águas" na carreira, a pintora contou em entrevista à RFI como é estar de volta ao evento italiano. 

    "Eu chamaria de um 'presente' o convite para essa participação", diz a carioca, uma das artistas brasileiras de maior projeção internacional na atualidade. Quando representou o Brasil na Bienal de Veneza de 2003, ao lado de Rosângela Rennó, cada uma em uma sala, Beatriz não imaginava que viveria novamente um momento tão intenso. 

    "Esse convite em 2024 reúne duas coisas muito significativas na minha vida: o Adriano Pedrosa [diretor artístico do Masp], com quem tenho parcerias diversas há pelo menos 20 anos, e é o primeiro curador não americano e não europeu escolhido para ser o curador-geral da Bienal, e o pavilhão de artes aplicadas, que é uma colaboração entre o Victoria and Albert, um dos meus museus favoritos", relata Beatriz. O V&A tem a maior coleção de arte artesanal do mundo e sempre serviu de referência ao trabalho da brasileira. "É a união de duas situações muito fortes em termos da minha vivência artística", destaca. 

    O universo do design, de tecidos, bordados, crochês e rendas sempre interessaram à pintora e gravadora. Para compor a seleção de obras apresentada em Veneza, o curador Adriano Pedrosa propôs a ela que focasse em tecidos para desenvolver as pinturas murais. A artista selecionou alguns que já tinha em sua coleção pessoal e, com uma verba do museu de Londres, comprou outros tecidos antigos artesanais.

    "Eu pude estudar especificamente a questão cromática, a construção dos tecidos e estruturas, o cruzamento, os elementos e motivos que você encontra, olhar para isso e trazer para o universo da minha pintura de forma mais objetiva", explica. "Foi um desafio, porque uma coisa é você ter essas referências e elas estarem livres no seu universo, outra coisa é você realmente ter aquele material 'x'". Em seguida, o resultado dessa observação foi transposto para os desenhos preparatórios, que foram o ponto de partida para a construção de cada uma das cinco pinturas monumentais que exibe em Veneza – todas inéditas para o público.

     

    História, arquitetura e pintura

    O visitante que entrar no pavilhão do Arsenale irá se deparar com a tela "Memórias do futuro 1", pintada por Beatriz Milhazes em 2022. "A ideia é realmente de você trabalhar ou vivenciar essa história para construir as memórias do futuro", avisa.

    Na passagem para a sala principal, vê-se um grupo de colagens de papel que serviu no processo de trabalhos em gravura e serigrafias recentes, mas anteriores à pandemia. Ao entrar na sala principal desse prédio histórico, carregado da memória de Veneza, construído com tijolos aparentes vermelhos e colunas imensas, aparecem as cinco pinturas monumentais sobre painéis, em um ambiente em que o público é envolvido entre a arquitetura e as pinturas. 

    "No centro do pavilhão, tem uma mesa, onde eu fiz uma composição com tecidos de vários países – Filipinas, Vietnã, Japão, África, Brasil, Guatemala, México – que praticamente virou uma instalação", conta a pintora carioca. 

    Tapeçaria irá decorar embaixada dos EUA em Brasília

    No painel principal, o maior deles, em frente às pinturas, a artista instalou uma tapeçaria desenhada por ela, mas executada na célebre Manufacture Pinton, instalada na região de Aubusson, no centro da França. A peça, de 8 metros de largura por 3,20 de altura, será instalada na nova sede da embaixada dos Estados Unidos em Brasília. 

    Em sua pesquisa de preparação das obras, Beatriz Milhazes diz buscar "a poesia" e "lidar com a alma". "Esse tipo de 'fazer', que são parte de rituais, que demonstram uma preservação da cultura de diversos lugares no mundo, é uma busca por algo que é espiritual, belo, humano", exalta.

    "Isso, para mim, sempre foi uma fonte extremamente rica para o meu trabalho. Eu sempre tentei unir os conceitos, vamos dizer, da pintura, que vieram do modernismo europeu. No meu caso, a minha referência mais forte foi o modernismo europeu e o nosso brasileiro, que já revisitaram todas essas práticas de arte popular, arte naif, outras artes, que hoje finalmente estão sendo reconhecidas simplesmente como arte", observa. A busca de regularidade, a ordem e a cor, como elemento principal nessa construção, sempre a interessou. "A mim, me fascina desenvolver complexos sistemas de ordem que são baseados num fazer humano", reflete. 

    "Uma felicidade estar ao lado de artistas indígenas"

    O curador Adriano Pedrosa trouxe para a Bienal de Veneza vários artistas indígenas brasileiros. Conviver com eles na preparação da exposição foi "uma felicidade", afirma a pintora carioca, que sempre se interessou por esse universo.

    "Os meus arabescos, por exemplo, foram inspirados nos desenhos faciais das tribos Kadiwéu, que são desenhos que as mulheres faziam no corpo", aponta. "Eu acho o Carnaval no Rio de Janeiro, o desfile carioca, extraordinário na maneira como a liberdade existe na relação cromática, junto com a questão das formas e o desenvolvimento dos temas. É um momento extremamente feliz que nós estamos vivendo", afirma Beatriz Milhazes. 

    Na avaliação dela, não é só a questão do curador Adriano Pedrosa ser brasileiro, mas a leitura renovada e "possível" que ele faz de toda a arte construída até agora, "um universo que nunca fez parte". "Para mim, é uma felicidade tudo isso", conclui.

    Fri, 26 Apr 2024
  • 278 - 50 anos da Revolução dos Cravos: cientista político estuda oposição à ditadura portuguesa no Brasil

    O dia 25 de abril marca os 50 anos da Revolução dos Cravos, em Portugal, que resultou no fim da ditadura liderada por Antônio Salazar e que influenciou na independência de colônias portuguesas na África. Um aspecto menos abordado dessa história é a oposição ao governo português feita a partir do Brasil, onde muitos portugueses viveram exilados. Esse é o tema da pesquisa do professor e cientista social da Universidade Federal Fluminense (UFF) Douglas Mansur, entrevistado pela RFI Brasil.

    Maria Paula Carvalho, da RFI

    RFI: Para fugir da ditadura de direita mais longa do século XX, que durou de 1926 a 1974, várias levas de portugueses foram para o Brasil, um dos países que mais recebeu imigrantes de Portugal, juntamente com a França e a Itália. Esses migrantes tiveram uma atuação importante contra o regime de Salazar e pela volta da democracia no seu país de origem. Como funcionavam estes centros de oposição à ditadura portuguesa no Brasil e que impacto eles tiveram?  

    Douglas Mansur: Como você mencionou, a ditadura de Portugal foi a maior ditadura de direita do século XX. Ela começou em 1926, com o golpe militar de Salazar, e segue ao longo dos anos com o Estado Novo. Salazar fica no poder até o final dos anos 1960, quando pela idade não tem mais condições de governar e vem a falecer. O regime dura, ainda, até 1974, nos últimos anos, tendo o Marcelo Caetano à frente. E durante todo esse período, nós tivemos uma oposição interna em Portugal, clandestina e alvo de prisões, de violações de direitos humanos etc., de formas de expulsão. Por isso nós tivemos um número significativo de exilados. O exílio no Brasil teve um papel fundamental. Até 1961, o Brasil era o país com maior número de imigrantes portugueses.   

    RFI: Uma primeira leva de exilados partiu em 1927, segundo a sua pesquisa, com um perfil mais liberal e republicano e fundaram associações no Brasil, onde passaram a publicar jornais. Como foi essa atividade?

    Douglas Mansur: Uma primeira leva, como você mencionou, veio logo em 1927. Eram liberais republicanos e fundaram no Brasil, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, centros republicanos, além de jornais. O "Portugal Republicano" era um desses jornais. Mas essas associações foram fechadas com o nacionalismo de Vargas e com o início da Segunda Guerra Mundial. Então, nós temos um período de praticamente uma década em que há muito pouca oposição à ditadura portuguesa. O salazarismo, inclusive, cresce entre as colônias e entre as associações de imigrantes.  

    RFI: Já depois da Segunda Guerra, a partir de 1950, começaram a chegar ao Brasil portugueses mais jovens, com ideais socialistas e comunistas, para fortalecer essa oposição. O que diferencia esse segundo grupo do primeiro e como eles atuavam? 

    Douglas Mansur: Essa oposição é retomada em meados dos anos 1950, aí já mesclando essa geração mais antiga de liberais republicanos com uma geração nova, que vive os anos da guerra em Portugal, com uma predominância de comunistas, mas também socialistas, mais tarde de católicos e até de dissidentes do regime.  

    RFI: Com a queda do fascismo e do nazismo, havia uma expectativa pelo fim das ditaduras na Espanha e em Portugal, o que não aconteceu. Mais do que nunca, esses portugueses no exílio se lançaram na luta pela democracia, e uma das suas armas era a publicação de um jornal. Esse processo também contou com a participação de brasileiros?  

    Douglas Mansur: Esse pessoal resolve fundar, em meados dos anos 1950, um órgão de imprensa: o "Portugal Democrático". Este jornal vai durar até 1975, portanto até depois do fim da ditadura, e vai ser o único órgão de imprensa em língua portuguesa, que trata de Portugal no exílio e que não vai sofrer censura. E ele vai conseguir agregar não só grande parte dessa oposição, mas também ter uma relação com intelectuais, com universitários, com sindicalistas brasileiros, com a sociedade civil brasileira de modo geral.  

    RFI: Logo em seguida, eles enfrentaram, também, a ditadura militar no Brasil. Eles puderam continuar a questionar a ditadura portuguesa, quando vários meios de comunicação brasileiros e intelectuais eram censurados em casa? Eles podiam tratar de casos de tortura, abusos ou falar de anistia no seu país natal, quando práticas semelhantes ocorriam no país de exílio?  

    Doulglas Mansur: Quando o jornal foi criado, o Brasil vivia uma democracia, ainda que relativa e questionável em muitos aspectos, mas isso possibilitou a ampliação significativa e a vinda para o exílio de lideranças políticas portuguesas do campo da oposição. De fato, em 1964, o jornal lança uma edição teste, logo após o golpe de 1964, em que usa vários jargões da esquerda, jargões marxistas, para testar se ele ia ou não ser censurado. E o que aconteceu foi que o diretor do jornal foi chamado e avisado de que o jornal poderia continuar a circular, desde que não tocassem em assuntos brasileiros. Apesar disso, ele foi importante porque circulava em São Paulo e em mais de 20 cidades do Brasil e, depois, em mais de 20 países. Ele tratava de temas como violação de direitos humanos, tortura, anistia, democracia, temas que estavam censurados no Brasil e que, de alguma forma, eram tratados, só que espelhados em outra ditadura. E, curiosamente, o governo da ditadura civil-militar brasileira também era simpatizante da causa anticolonial, de libertação dos povos das então colônias africanas, que começaram um conflito com Portugal, a partir de 1961, para se tornarem independentes. E o jornal tratou bastante disso e se aproximou desses movimentos, o que fez com que ele tivesse longevidade e não passasse por censura.   

    Evento em Paris

    RFI: Tudo isso está no livro que você publicou em 2006, chamado "A oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro", que está na sua terceira edição. Por causa desse trabalho, você foi convidado para tratar do tema em uma conferência que acontece aqui em Paris, neste 26 de abril, um evento sobre os 60 anos da ditadura brasileira, na Escola de Altos estudos em Ciências Sociais da França (École des Hautes Études en Sciences Scociales – EHESS), do qual você participa por videoconferência para falar dessas redes de enfrentamento da ditadura em outros países. Conte-nos sobre a sua participação?  

    Douglas Mansur: Trata-se de um evento sobre os 60 anos da ditadura no Brasil e eu vou abordar essas redes que foram importantes para a inserção dos exilados portugueses no Brasil. É importante dizer que já havia revistas no Brasil que haviam aproximado os modernistas brasileiros aos modernistas portugueses. Então, nas páginas do "Portugal Democrático", você podia encontrar manifestos em prol da anistia assinados por Vinícius de Moraes, artigos do Rubem Braga, de Carlos Dummond de Andrade, que contribuíam para o jornal. O sociólogo brasileiro Florestan Fernandes também ajudou a organizar congressos no Brasil em prol da anistia de presos políticos da Espanha e de Portugal. E depois, com o 25 de abril de 1974, acontece o movimento inverso. Uma parte desses portugueses volta para Portugal e passa a lutar e a apoiar uma oposição à ditadura brasileira. Alguns brasileiros vão para Portugal e para Moçambique, que é uma dessas ex-colônias, e que se tornam independentes. Então, de alguma forma, você tem uma vivência em duas ditaduras e a oposição a duas ditaduras. Justamente essa vivência, de um enfrentamento de um exílio no Brasil e depois de uma segunda ditadura no Brasil, e em seguida o movimento inverso, de receber e acolher brasileiros, é disso que iremos tratar. 

    Crescimento da extrema direita  

    RFI: O que pode ser dito sobre a relação atual entre o Brasil e Portugal? Em que contexto se inserem esses 50 anos da Revolução dos Cravos e os 60 da ditadura brasileira? 

    Douglas Mansur: Brasil e Portugal têm uma relação histórica, apesar da imigração de portugueses no Brasil ter diminuído significativamente e de Portugal ter adentrado na União Europeia em 1986 e ter se voltado muito mais para este espaço. Porém, os dois países vivem dilemas contemporâneos em torno da democracia. É impressionante ver como os temas são recorrentes, inclusive os lemas, as frases. O Salazar tinha como lema "Deus, pátria e família", por exemplo. Eu vejo muito mais proximidade entre o salazarismo e uma extrema direita brasileira do que propriamente com o fascismo histórico italiano, que era expansionista, que era secular, não era ligado à religião. A expressão de extrema direita do Brasil, e que até agora também tendo espaço em Portugal, tem muito mais relação com o salazarismo histórico, embora tenha alguns elementos de fascismo do que com propriamente o fascismo e o nazismo. 

    RFI: As últimas eleições em Portugaldemonstram a ascensão da “nova direita” representada pelo partido Chega.

    Douglas Mansur: Os dois países estão experimentando testes nas suas democracias e a ascensão de uma extrema direita. Em Portugal, pela primeira vez desde o 25 de abril de 1974, você tem uma votação expressiva de extrema direita. Até onde vai o pluralismo, até onde a democracia pode tolerar de modo que não seja aniquilada? E são debates que já estavam no antigo jornal "Portugal Democrático", não com essa linguagem. Mas são debates que a gente, olhando para a história, vê que tiveram a ver com a desinformação. Não é o único fator, mas foi um fator importante para a ascensão da extrema direita, do nazifascismo e de outros regimes de extrema direita na Europa. Há outras razões, como a questão econômica, estrutural e estamos vendo um período pós-industrial no mundo, isso gera muito desemprego e novos riscos sociais. E então alguns imaginam outras alternativas à democracia. Há uma ascensão de extrema direita em diversos lugares do mundo: na Hungria, no Brasil e até nos Estados Unidos. Voltando à questão histórica, eu vejo muita relação das fake news com toda a propaganda falsa que o nazismo fazia sobre o perigo do estrangeiro, particularmente do polonês, para justificar a invasão da Polônia e começar ali uma expansão pela Europa. Tudo isso passava no cinema, passava no rádio. Isso fez com que Hitler fosse eleito e levou a uma exacerbação do nacionalismo. A gente está no meio desse debate agora.  

    Thu, 25 Apr 2024
  • 277 - "Aposentaria do Brasil é um excelente negócio", diz advogada especialista em direito internacional

    Você sabia que existe um acordo previdenciário entre o Brasil e a França que permite somar o tempo de contribuição nos dois países para a aposentadoria? Mas afinal quando é vantajoso usar essa opção? É possível ter duas aposentadorias? Essas são algumas das dúvidas mais comuns entre brasileiros que se mudam para outro país, deixando para trás anos de contribuição. Para explicar melhor esse assunto, a RFI convida a advogada internacional Kelli Menin, brasileira radicada na França, com especialização em Direito Previdenciário. 

    Maria Paula Carvalho, da RFI

    RFI: Como funciona a aposentadoria aqui na França? É possível trazer os valores de contribuição do Brasil?  

    Kelli Menin: A aposentaria do Brasil é um excelente negócio. De uma maneira geral, aqui na França, por mais que você trabalhe muitos anos e contribua muito, você vai acabar se aposentando mais ou menos com 40% da média. Já no Brasil, no mínimo com 60% da média. E sobre os valores: eles não vão sair de um país para o outro. A única coisa que vai sair de um país para o outro é o tempo. Mas você vai acabar recebendo a proporção do que você contribuiu em cada país se você usar o acordo. 

    RFI: Quando e como usar o acordo? 

    KM: A melhor maneira de usar esse acordo internacionalé quando, somando o período que você tem em outros países com o tempo da França, você completa 15 anos de contribuição e isso quando você já tem a idade para se aposentar, ou seja, 64 anos aqui na França, e no Brasil, 62 para as mulheres e 65 para os homens. Portanto, chegando nessa idade, se você não tiver 15 anos de contribuição completos em algum desses países, você pode pedir o acordo e usá-lo para se aposentar com o tempo de trabalho de outro país, no país que falta. Isso se chama totalização de períodos. 

    RFI: E se a pessoa contribuiu pouco no Brasil?  

    KM: Não tem problema nenhum. Muita gente pensa que vale a pena esquecer a aposentadoria do Brasil, mas não, isso não é verdade. Depende da sua idade: se você tiver entre 40 e 45 anos, vale muito a pena pagar o INSS no Brasil para ter duas aposentadorias, porque você pode completar. No Brasil, você precisa apenas de 15 anos de contribuição e você tem direito a aposentadoria integral. 

    RFI: Depois desses 15 anos de contribuição, o trabalhador precisa continuar pagando esporadicamente o INSS?  

    KM: Sim, eu aconselho, pois eu atendo muitas pessoas que estão pagando errado e que estão colocando dinheiro no lixo. Se você já completou 15 anos de contribuição, você não precisa pagar todos os meses. Você precisa pagar pelo menos uma vez a cada seis meses para manter a qualidade de segurado no INSS. Pense que o INSS funciona como uma seguradora. Se você estiver mantendo a sua qualidade de segurado, ou seja, estiver pagando no mínimo uma vez a cada seis meses e algo acontecer, como caso de morte ou uma doença, você vai contar com esse seguro público. Algum familiar vai ter direito à pensão por morte, ou você vai poder receber a aposentadoria por invalidez ou auxílio-doença, o que é muito importante. 

    RFI: Vamos falar sobre valores. Quem contribuiu vários anos com um valor alto, e depois que se muda de país começa a contribuir com o mínimo. É certo fazer isso ou vai acabar baixando a aposentadoria? 

    KM: Não faça isso. Quem contribuiu por muito tempo com valor alto, é essencial que continue contribuindo por um valor alto também até completar os 15 anos. O que acontece se você pagar pelo salário mínimo? Você está jogando no lixo um patrimônio previdenciário valiosíssimo. Justamente para não pagar um pouquinho a mais, você vai ter uma perda financeira gigantesca na aposentaria. O cálculo do seu benefício, no final, vai diminuir muito e você vai ter uma aposentadoria com um custo-benefício horrível. 

    RFI: É possível se aposentar em dois países?  

    KM: Não só em dois, você pode se aposentar em vários países. Você pode seguir essa lógica: você precisa no mínimo de 15 para ter uma aposentadoria integral em cada país.  

    RFI: Quem não contribuiu em nenhum dos dois países ainda tem algum direito?  

    Keli Menin: Ótima pergunta. Depende de alguns outros requisitos, mas tanto aqui na França como no Brasil, os dois países disponibilizam benefícios assistenciais. Aí, depende da renda da família ou de algumas outras condições. Resumindo, se você precisar dos valores para sobreviver, você pode, você tem o direito, sim, ao benefício previdenciário. 

    RFI: É possível pagar contribuições atrasadas no Brasil para se aposentar ou aumentar o valor do benefício? 

    KM: Você até pode fazer pagamentos atrasados, mas precisa analisar se vale a pena. Com a reforma da previdência, foi introduzida uma lei nova que proibiu utilizar o tempo ou os pagamentos de atrasados como carência para se aposentar. Então, não permite mais pagar, ou seja, fazer pagamentos atrasados para se aposentar. Para aumentar o valor pode. Assim, se você precisar pagar atrasados para completar carência, para entrar na regra de transição antes da reforma, o INSS não aceita. É bem complexo isso, mas se você quer pagar atrasados, é melhor procurar um profissional que vai te ajudar.  

    Wed, 24 Apr 2024
  • 276 - "Há uma rede simbólica tácita de censura no Brasil", diz Wagner Schwartz, que lança livro em Paris

    Em "A nudez da cópia imperfeita", lançado no Brasil pela editora Nós, o artista Wagner Schwartz revisita, reinventa e elabora o episódio vivido em 2017, quando um exército de robôs e aliados de Jair Bolsonaro usaram uma imagem de sua performance La Bête, inspirada na série Bichos, de Lygia Clark (1920-1988), apresentada no MAM. Retirada do contexto, a foto, onde a filha de uma amiga toca o corpo nu do artista, deflagrou um linchamento virtual sem precedentes e milhares de ameaças à sua vida.

    No dia 26 de setembro de 2017, um artista brasileiro, Wagner Schwartz, fazia uma performance no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Inspirada na série Bichos, da artista visual Lygia Clark, a performance de Schwartz se chamava La Bête. Dentro da sala, uma amiga de longa data do artista, e também sua colega, Elisabeth Finger, estava presente com sua filha de quatro anos, que num determinado momento da apresentação toca o corpo do artista nu. Esse momento é captado numa foto que, tirada do seu contexto, é levada para a internet, multiplicada e transformada em milhares de ameaças de morte, num linchamento virtual, dentro e fora do Brasil.

    O episódio é revisitado pelo artista Wagner Schwartz no livro "A Nudez da Cópia Imperfeita", com o qual acabou uma turnê pelo Brasil e que será lançado em Paris no dia 29 de maio, com leituras da atriz portuguesa Maria de Medeiros. "No livro eu falo sobre os efeitos desse contexto [do episódio], mas não exatamente sobre o fato, o fato já está, digamos, midiatizado, revelado, extrapolado em jornais no Brasil e no exterior", explica Schwartz que conversou com a RFI sobre a publicação.

    RFI: Você cita a jornalista Eliane Brum, que diz que no Brasil a ficção está obsoleta, só existe realidade. É interessante porque o livro faz uma releitura poética e ficcional também de um momento seu e do momento brasileiro muito importante. E você faz menção ao "Memórias Póstumas de Brás Cubas", marcador do realismo brasileiro de 1881, de Machado de Assis. Você retoma a mesma ironia machadiana com essa proposta de "hiperrealismo", esse realismo que a jornalista que Eliane Brum fala...

    Wagner Schwartz: Eliane Brum foi muito importante porque para mim e para o desenvolvimento dessa trama, porque eu, no momento em que fui atacado no Brasil, decidi não falar para nenhuma imprensa. Foi muito interessante o fenômeno de um dia ser, digamos, desconhecido pela imprensa e, no dia seguinte, ser procurado pelas maiores e mais importantes publicações do Brasil. Mas, na realidade, eles não queriam me entrevistar, eles queriam entrevistar alguém que não existia, que não era eu. E eu não podia dar entrevista em nome desse Wagner que não existia.

    RFI: Quem era essa pessoa?

    WS: Era uma pessoa inventada pela extrema direita e seus seguidores. Então eu não podia falar por ele. Eu só podia falar por mim. E naquele momento eu estava completamente machucado, não conseguia dar entrevista. Há uma rede simbólica tácita de censura hoje no Brasil que é extremamente preocupante.

    RFI: Você foi linchado virtualmente. A cena foi tirada do contexto em que existia e foi disseminada em todo o país e fora dele, onde ouvimos os ecos. O diretor sueco Ingmar Bergman dizia que "a sombra da morte dá relevo à vida". Como você transformou o linchamento em vida nesse livro?

    WS: Ainda pegando a linha da Eliane Brum, foi que ela entrou em contato comigo, um mês depois que tudo tinha acontecido e quando ela entrou em contato comigo, eu disse para ela que não conseguiria responder para ela naquele momento. Como ela fazia parte de um jornal [o El País], que tem uma estrutura de uma dinâmica diferente dos outros, ela me disse que podia esperar. E eu respondi no meu tempo essas perguntas para ela. A Eliane conseguiu me acompanhar e dar sentido esse momento e publicar o momento. Então ela foi a pessoa que conseguiu de alguma forma e talvez sem saber, mas cuidar da minha dor naquele momento, como uma jornalista sabe fazer. Foram muitas ameaças de morte. Ameaças de morte não são, claro, bonitas. São estrategicamente horrorosas e te criam uma sensação de medo que você, na realidade, não tem diariamente. No Brasil, nós nascemos com medo, nós andamos com medo na rua, mas essa sensação era elevada à máxima potência, porque eu não desacreditava delas, bastava uma para me tirar a vida.

    RFI: Como foi a reação das instituições artísticas brasileiras a esse episódio?

    WS: Elas se fecharam, eu acho. Eu acredito que elas tenham criado um programa ou uma programação que para um "não público", e é isso que para mim é o mais preocupante. Hoje me parece que as instituições de arte no Brasil em geral estão fazendo programações para quem não vai, para quem não visita essas instituições. (...) Se a gente vai aqui [em Paris] no Centro Pompidou, a gente sabe o que vai encontrar. Se a gente vai no Palais de Tokyo, a gente sabe que a gente pode encontrar, mas as instituições de arte brasileiras estão mais preocupadas com o que este "não público" pode ver, pode tomar consciência, do que com o próprio público que está lá para assistir. Então há uma rede simbólica tácita de censura hoje no Brasil que é extremamente preocupante. E como nós temos um governo hoje de esquerda no Brasil, toda uma equipe extraordinária de pessoas inteligentíssimas, capazes de lidar com esse desconforto do corpo, desse corpo que foi soterrado durante anos na nossa cultura. Nós temos mudanças nas leis, mas, institucionalmente, no mundo da arte, não há. O que há é uma desconfiança "progressista" sobre esses corpos. 

    RFI: Você dedica o livro à pessoa que retirou a imagem da criança do Instagram e que deflagrou todo esse processo.

    WS: Sem essa pessoa, esse livro não teria acontecido. E mudanças importantes na mentalidade brasileira talvez não teriam também acontecido. Antes eu acreditava que a arte fazia pouco seu papel social, político, e eu acredito hoje que quando ela é tirada do seu invólucro, ela pode causar transtornos, e bons transtornos na sociedade. Eu já agradeci Jair Bolsonaro publicamente ao MBL, que são figuras deploráveis do sistema político brasileiro, por terem feito o trabalho que os jornalistas antes não conseguiam fazer no Brasil, que era exatamente explorar a arte como ela é. Quando a gente é censurado, começa a se autocensurar também.

    RFI: Você cita Laurie Anderson dizendo que "não é a bala que mata, é o buraco". Eu queria saber nessa censura progressista que você cita, qual é o buraco que mata, que corpos são permitidos e que corpos são excluídos?

    WS: Olha, eu vou usar ainda mais a palavra agora, no momento em que talvez não deveria. Quando a gente é censurado, começa a se autocensurar também. E eu estou me programando para não fazer isso. Ontem, por exemplo, uma amiga me mandou um edital feito entre o consulado francês e o consulado alemão sobre um novo projeto de curadoria em que eles estão buscando temas relacionados à "felicidade". Então você já imaginou o tanto de artista "feliz" que a gente vai ver mandando seu projeto? Eu não tenho ideia de como um tema como esse possa surgir em um momento em que guerras estão acontecendo, em que nós vemos vítimas caindo na nossa frente, mudanças climáticas absurdas e censura acontecendo dentro e fora do Brasil.

    RFI: Você começou esse livro através de um processo documental do episódio, e acabou derivando em determinado momento pela ficção. Por que?

    WS: Eu optei pela ficção porque não queria nesse livro dar voz às vozes que já foram ouvidas. Eu precisei falar do que acontece do lado de dentro. Então é o meu corpo que fala, é a minha memória que fala e ela é ficcional porque o real tem o tempo dele. Tem um instante dele acontecer, e, a partir do momento que seu corpo se desconecta do real, do fato, é impossível que a ficção não seja essa ponte que cria esse elo entre de linguagem, entre um efeito e uma perspectiva do efeito. E eu precisei da ficção, porque na ficção existe mais espaço. O fato está encerrado. No passado ele é fixo, mas pela ficção e pela arte, o passado não é fixo, ele pode ser reestruturado.

    *Para assistir o vídeo desta entrevista na íntegra, clique na foto.

    Tue, 23 Apr 2024
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